Se hoje jovens publicitários celebram a presença de profissionais negros brasileiros no Festival de Publicidade de Cannes desse ano, eles precisam saber que existem muitos movimentos sendo realizados por aqueles que estão na área há muitos anos, abrindo caminho para os seus. Como é o caso da publicitária Raphaella Martins, executiva da Meta, que participou da Mesa Brasil, que ajudou a desenhar o festival de 2023.
Raphaella é responsável por criar o Projeto 20/20, primeiro programa de inclusão racial do mercado publicitário, que ajudou a fundar quando estava na J.Walter Thompson (atual Wunderman Thompson) e que influenciou a criação de um Pacto entre o Ministério Público do Trabalho e as principais agências de publicidade do país para contratação de profissionais mais profissionais negros.
Em 2021, foi homenageada no Women To Watch Brasil em 2021 e foi eleita em 2019 pela YouPix como uma das 15 pessoas que mais contribuíram para o mercado de conteúdo e influência no Brasil. Fez parte da lista Game Changers 2022 por desafiar o mercado a pensar diferente e contribuir com transformações positivas na indústria, além de integrar a Powerlist Bantumen, que elege as 100 Personalidades Negras Mais Influentes da Lusofonia.
Ela conversou com o Mundo Negro o sobre cenário da publicidade para profissionais negros nos últimos anos e contou como analisa a presença de mais negros brasileiros em Cannes. “Reflexo de um trabalho de bastidores incansável de muita gente que entende não ser mais possível falar sobre inovação, tecnologia e futuro, se continuarmos com protagonismo econômico e de narrativa apenas de um único grupo”.
Confira a entrevista completa com Raphaella Martins
Mundo Negro – Em 2022, você e Joana Mendes foram as primeiras mulheres negras brasileiras a pisar em um palco de Cannes, como isso aconteceu?
Raphaella Martins – Em Maio de 2022, quando saiu a lista dos jurados do festival, dos 24 brasileiros selecionados apenas 1 profissional era negro. Olhando essa fotografia não proporcional do Brasil, o Papel&Caneta, coletivo sem fins lucrativos, junto com a Chapa Preta, Publicitários Negros, AUE, eu e mais alguns profissionais do mercado escrevemos uma carta pública para o Simon Cook, presidente do festival, questionando a falta de pluralidade e reflexo do que somos como país no grupo de jurados selecionados daquela edição. O presidente nos respondeu publicamente, se comprometendo com uma série de ações imediatas e a longo prazo. Uma das ações imediatas envolveu o convite para que estivéssemos em um dos painéis da edição falando sobre a importância de termos uma mesa de decisão plural para uma melhor indústria criativa. E foi aí que eu, a Joana Mendes junto com a Cindy Gallop, grande nome da publicidade global com mediação da Stacie Graham, diretora global de equidade racial da WPP, nos reunimos para dizer muita coisa óbvia, mas que segue fora do radar de muitos festivais globais como Cannes Lions.
MN – Qual foi a resposta recebida depois de enviar a carta aberta ao presidente do Festival, em 2022, questionando a falta de jurados negros brasileiros na lista de Cannes no ano passado?
RM – A carta teve uma boa repercussão na imprensa internacional, mas dentro do Brasil a discussão ficou muito nos bastidores e principalmente sem voz ativa pública de muitos dos que se dizem aliados. E esse foi um grande aprendizado sobre a urgência de ampliarmos o entendimento do que é ser um aliado efetivo que usa seu espaço de influência e poder para de fato contribuir com a transformação. Questiono inclusive hoje o termo “aliado”, pois essa movimentação não tem a que se aliar se ela não é uma responsabilidade de apenas algumas pessoas, uma vez que todos nós profissionais de comunicação perdemos com uma indústria limitada criativamente. E ainda assim vejo muita gente branca se passando por consciente, subindo em palco pra ganhar prêmio de D&I, mas fugindo das conversas e posicionamentos desconfortáveis quando momentos como esse aparecem. Ser aliado não é falar no secreto que nos apoia, mas deixar o desconforto da fogueira pública para os grupos oprimidos que já mal conseguem respirar nesse meio.
MN – Como foi sua participação na mesa Brasil, que pensou o desenho deste ano para o Festival?
RM – Vir para o Brasil estava na lista de compromissos públicos assumidos pelo presidente do festival, Simon Cook, e em Novembro de 2022 ele passou uma semana aqui com a indústria. E como parte da tour global, o festival promoveu um encontro nas principais cidades do mundo liderada pessoalmente pelo Simon para repensar a estratégia da edição que marcaria a 70a edição. Fui convidada para o encontro de São Paulo com outros profissionais do mercado dividindo provocações principalmente sobre a urgência do festival rever valores, logística e estrutura que permita maior aproximação com a criatividade que já existe nas periferias do mundo, mas que ainda segue estatisticamente fora do radar do festival. E com o objetivo de aproxima-ló de profissionais criativos brasileiros de grupos sub-representados e politicamente minorizados, promovi um encontro na sede do Clube de Criação, com espaço cedido pela Joana Mendes, onde junto com alguns profissionais negras e negros brasileiros como a cineasta Thatiane Almeida, Luna Lina presidente do Publicitarios Negros, Dilma Campos presidente da Outra Praia, Peter Albuquerque, Felippe Guerra da Somos Brasis, Gabi Rodrigues VP da Soko, pudemos falar sobre a urgência de darmos protagonismo intencional a profissionais de grupos sub-representados de países da América Latina e do continente africano para expandirmos definitivamente a excelência, qualidade e inovação da criatividade global.
MN – Esse ano houve uma presença negra brasileira bastante celebrada no Festival, como você analisa essa movimentação?
RM – A importância e reflexo de um trabalho de bastidores incansável de muita gente que entende não ser mais possível falar sobre inovação, tecnologia e futuro, se continuarmos com protagonismo econômico e de narrativa apenas de um único grupo que ainda é invariavelmente do ponto de vista global, norte americano e europeu. Precisamos celebrar qualquer avanço, precisamos celebrar a comprovação do quanto a visão destes profissionais enriqueceu nossa perspectiva sobre o festival, pois pudemos viver e consumir a semana por ângulos que nem seriam pensados se eles não estivessem lá. Porém, quando vemos que o palco principal segue sendo protagonizado apenas pela perspectiva norte global – 90% dos palestrantes no Palais eram ou dos EUA ou da Europa – mesmo quando se fala sobre diversidade e inclusão, precisamos seguir cientes e conscientes que a celebração não nos seduzirá a ponto de esquecermos do grande trabalho que ainda precisamos fazer todos juntos como mercado se quisermos de fato romper com a lógica da história unica. Essa lógica enfraquece, empobrece e diminui nosso potencial global criativo. E a delegacão de profissionais negros brasileiros que esteve lá mostrou com novas perspectivas, resultados e prêmios que dá pra ser diferente.
MN – Como criadora do Projeto 20/20, o primeiro programa de inclusão racial do mercado publicitário, como você analisa o cenário para os profissionais negros da publicidade no Brasil atualmente?
RM – Em 2017, quando desenhei junto com a Patrícia Santos da EmpregueAfro a estrutura do programa 20/20, lançamos um processo seletivo que trouxe pro radar da indústria não só profissionais contratados pela J Walter Thompson, agência pela qual lançamos o programa, mas também uma nova excelência criativa que oxigenou todo o ecossistema com a movimentação dos profissionais pré-selecionados não contratados entre várias agências do grupo e pelo mercado. Essa movimentação junto com o processo de conscientização e mudança cultural que desenhamos com a Semana da Equidade Racial para lançar o programa e que hoje já está em sua 8a edição, escalou para além dos muros de uma única empresa, influenciou o Pacto entre o Ministério Publico do Trabalho e as principais agências de publicidade do país que se comprometeram em contratar mais profissionais negros até 2030 em áreas estratégicas de suas organizações. E isso nos traz atualmente para um cenário muito particular: estamos hoje inseridos em muitas posições de influência desta teia complexa, sofisticada, mas que ainda segue sendo estruturalmente racista. E isso nos exige seguir ainda mais vigilantes e estrategicamente sofisticados – principalmente em posições do que se entende como poder – para não nos deixarmos seduzir por um “topo” que ainda não existe enquanto nossa base segue estatisticamente nos piores índices e muitos dos nossos jovens potenciais criativos, sonhadores e talentosos sendo mortos a cada 23 minutos por balas achadas.
MN – A eleição de uma chapa preta para presidir o Clube de Criação nos últimos dois anos foi um marco histórico para o segmento. Quais mudanças a publicidade no Brasil pode esperar a partir de avanços como este?
RM – Janelas com novas oportunidades de conexão. A Chapa Preta traz perspectivas e profissionais com repertórios que se conectam com uma visão que segue fora do radar dos grandes grupos de comunicação e de todo ecossistema. E esse conflito positivo entre o processo criativo que já existe mapeado e excelência criativa que acontece aos montes principalmente nas periferias do Brasil e fora do eixo RJ-SP é o que nos possibilita ampliar agora o nosso entendimento do que é criatividade, sair da auto-referência, do estereótipo e viver a beleza que é desbravar o desconhecido, o incerto que é o único caminho possível para inovação e evolução do nosso mercado.