Um dos profissionais de TI mais respeitados do Brasil, Marcelo Leal é também o autor do livro “THEREZA: Uma Genealogia Afro-Brasileira”, que traz a história de pessoas negras, seus ancestrais, que conheceram o passado de escravidão vivido no Rio Grande do Sul, Estado em que Leal nasceu, e que também contribuíram para a construção da região.
Apesar de ser visto como um Estado racista, os pretos e pardos compõem 18,9% da população do Rio Grande do Sul, de acordo com estudo publicado em novembro de 2022 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
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Ao contar essas histórias, Marcelo Leal resgata a história de sua família e reconta sua própria trajetória como um homem negro de origem periférica, que levou cerca de 12 anos para se formar porque tinha que cursar poucas disciplinas por semestre para conseguir pagar a mensalidade da faculdade. Mas que, assim como seus ancestrais, criou as estratégias necessárias, carregadas de muito estudo e dedicação, que o levaram a ocupar um cargo de liderança em uma das maiores empresas de tecnologia do mundo.
O escritor contou ao MUNDO NEGRO o processo para conhecer sua genealogia e deu detalhes sobre o tempo em que passou pesquisando documentos e informações que pudessem ajudá-lo a fazer esse registro da história dele e que também é parte da história do Brasil.
Confira a entrevista da jornalista e diretora de conteúdo do Mundo Negro, Silvia Nascimento, com o autor de “THEREZA: Uma Genealogia Afro-Brasileira”, Marcelo Leal.
MN – Ir atrás da nossa ancestralidade, enquanto pessoas negras, é um desafio quase inconcebível para a maioria de nós por conta de tantos apagamentos. Como foi o processo de querer ir atrás da sua história desta forma, quando foi o start e deste start, onde nasce a ideia do livro?
Tenho impressão que foram três momentos distintos. O primeiro foi há bastante tempo, quando ainda estava entendendo quem eu era e onde estava no mundo (risos), pois como não fui criado com minha mãe e meu pai, minhas referências eram um tanto complexas na minha infância. Minha avó me ajudou muito aqui, pois ela sempre teve muitas fotos e muitas histórias do meu lado paterno. E desde essa época comecei a gostar desta questão genealógica sem ainda saber exatamente o que era esse estudo à época. O segundo momento foi quando me entendi como um homem negro e da periferia do nosso país, em um estado onde as histórias africanas e sua descendência não é priorizada. E quando você se dá conta disso e entende o racismo e todas as situações às quais você está inserido na sociedade brasileira, junto com a necessidade que todos nós temos de saber quem somos e compreender nossa ancestralidade (pois todos nós temos histórias e antepassados que viveram e trabalharam para que estivéssemos aqui hoje), foi quando decidi buscar essas histórias. O terceiro momento se deu durante o processo, quando inúmeros historiadores, profissionais com experiência no assunto, me falavam que o trabalho que eu estava fazendo era raro e que temos muito pouco no Brasil nesta linha genealógica. Muitos inclusive me dizendo que eu tinha que publicar todas essas minhas descobertas, e nesse momento eu já estava também contemplando o material todo que eu tinha organizado, e surgiu a ideia de transformar essas histórias em um livro. Mas de forma independente, para sair exatamente como eu queria, desde a capa, conteúdo, diagramação e etc..
MN – Thereza. Qual é a simbologia deste nome que faz parte do título da sua obra?
Além de ser um nome bonito e forte, marca uma das passagens mais especiais deste livro. É só o que posso falar (risos).
MN – Para as pessoas negras que querem fazer essa jornada, qual seria para você o primeiro passo? O teste de DNA? É um processo para poucos, tem termos de custos, certo?
Sim, realmente todo o processo de pesquisa genealógica tem custos em alguns procedimentos, como você bem traz no caso dos testes de DNA. Outros exemplos são as segundas vias de certidões de nascimento, óbitos e etc. que buscamos nos cartórios e que também tem custos. Os registros eclesiásticos também, inclusive os custos me surpreenderam, pois foram bem maiores do que os custos dos cartórios, por exemplo. Mas como recomendação, julgo mais apropriado as pessoas começarem pelos familiares que estão vivos e perguntar pelas histórias, documentos (carteiras de identidade, certidões, fotos e etc.), e fotografar, pedir cópias, e realmente recorrer a essas outras opções que tem custo em uma segunda fase. Outro ponto que vale mencionar é que muitos registros são públicos e os arquivos públicos dos estados, a biblioteca nacional, arquivo nacional, museus e etc., são, em sua grande maioria, sem custo (alguns com documentos que podem ser pesquisados inclusive online, no conforto da sua casa). Por último, mas não menos importante, temos o FamilySearch que é simplesmente sensacional. Um serviço gratuito e com uma riqueza de documentos eclesiásticos e de cartórios que ajuda demais para as pessoas iniciarem suas pesquisas. Sou muito agradecido ao FamilySearch!
MN – Especificamente sobre o livro, quanto tempo foi o processo de pesquisa até você começar a escrever e, sem dar spoiler, daria para falar algo que te surpreendeu positiva ou negativamente?
Julgo que esse processo todo começou lá atrás na minha infância, e foi progredindo e tendo alguns momentos de mais ênfase em diferentes fases da minha vida. Às vezes descobria algo e mergulhava em algumas pesquisas, então guardava as informações e passava um ou dois anos sem me dedicar diretamente ao assunto. Em 2020, depois de um episódio importante na minha vida (que quem ler o livro irá saber), voltei com mais foco e determinado a completar minha genealogia. Nos últimos oito meses esse foi meu foco nos finais de semana, até eu tirar férias e viajar para algumas cidades do interior do RS e terminar o livro. Algo positivo que posso salientar é que as informações que temos são maiores e de mais fácil acesso do que eu imaginava, para nós pessoas negras. Eu realmente pensei que não teria quase nada e a dificuldade de acesso seria absurda… Não digo que seja fácil, mas existem arquivos e profissionais muito capazes e determinados a nos ajudar. O ponto negativo é realmente entrar mais no detalhe da escravidão e das coisas que ocorreram neste período no nosso país. Às vezes parece que é tão longe, né? Mas são pouco mais de cem anos, muito mais perto do que imaginamos.
MN – Você acredita que o fator regional dificulta essa jornada de busca ancestral? Você é gaúcho, ou seja, nasceu em uma região de maioria branca. Ainda sobre a pesquisa, ela foi feita 100% sobre seus ancestrais em solo brasileiro? (ou você chegou fazer alguma pesquisa fora do Brasil?)
Realmente o fator regional dificulta sim, pois conforme você falou é uma região de maioria branca (na realidade eu não tenho esse dado do censo, mas imagino que seja), entretanto o fato é que existem muitas pessoas negras no Rio Grande do Sul e conforme eu apresento no livro, os africanos e sua descendência estiveram na formação e construção do Estado. Então essa também foi uma das razões para eu publicar esse material. Existe muito mito em torno da formação e histórias de contribuição do RS. Sobre a pesquisa, eu não cheguei a viajar para fora do Brasil especificamente para as pesquisas do livro, mas as histórias dos meus antepassados não se restringe ao nosso país, e as histórias presentes no livro trazem essa dinâmica entre o continente Americano, Africano e Europeu que estão presentes na narrativa que apresento de uma maneira ou de outra.
MN – O que mudou em você, após saber tanto sobre os seus antepassados. De que forma esse novo conhecimento impactou a sua vida e a sua visão sobre a sociedade brasileira?
Essa talvez seja a pergunta mais difícil de responder, porque todo o conhecimento que eu obtive sobre meus antepassados, sobre o que eles tiveram que passar e suportar para que eu esteja hoje aqui conversando com você, e o quanto isso me tocou é algo dificílimo de expressar. Conhecer também mais a fundo a formação e construção do Rio Grande do Sul, estado onde eu nasci e cresci, a contribuição fundamental que os africanos e sua descendência tiveram nessa trajetória do Estado e do nosso país, e imaginar que nos meus quase 50 anos de vida nunca tinha ouvido ou estudado sobre essas histórias na literatura oficial, é realmente difícil. Com certeza elas existem, e temos muitos profissionais, principalmente pessoas negras, trabalhando para apresentar essas histórias. Mas se tivéssemos interesse dos governantes, essas histórias estariam tão difundidas quanto as outras que todos nós conhecemos. Eu cresci, e imagino que meus amigos e a maioria dos negros no RS, da minha geração pelo menos, cresceram pensando que o negro simplesmente não teve nenhuma participação na história do Rio Grande do Sul. Fora uma ou duas páginas nos livros da quarta ou quinta série do fundamental, que falavam sobre a escravidão no Brasil e restringiam a pessoa negra a um indivíduo escravizado.
MN – O que o Marcelo Leal deixa de registro para os seus descendentes em termos de histórias e documentos, que começam com seu núcleo familiar, para que eles saibam quem você foi?
De verdade, com toda a tecnologia e abundância de recursos que nós como sociedade temos hoje, a minha, a sua e as histórias de todos que compartilham esse momento conosco, estão aí e muito provavelmente permanecerão em abundância e de fácil acesso. Minha maior preocupação era buscar e tentar deixar minha contribuição resgatando as histórias dos meus antepassados. Deixar registrado para minha família, meus filhos e para todos que embarcarem nessa jornada presente neste livro. Essas histórias de trabalho, luta e principalmente de esperança que essas pessoas tiveram. Porque essas histórias são frágeis no sentido de que são poucos os registros e arquivos, teve algumas ocasiões que cheguei em lugares onde tinham informações importantes sobre meus ancestrais e fiquei sabendo que teve um incêndio ou uma enchente, e todos os documentos, fotos inclusive, foram perdidos. Então, para minha descendência eu deixo esse livro, minha busca e registro daquelas e daqueles que vieram antes de mim e antes deles. Minha história sendo a de alguém que buscou exaltar o início, e que essas histórias que deixo registradas nesta publicação, sirvam para todos da minha família que vierem depois de mim, a nunca esquecerem quem são e muito menos quem foram seus ancestrais.
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