Por Rodolfo Gomes e Victória Gianlourenço
Adriana Barbosa nasceu no bairro do Jabaquara, em São Paulo. Filha de pai contador, que trabalhou em emissoras de rádio por muitos anos, e uma mãe, que também trabalhou no ecossistema de rádio e TV, como contato comercial com agências de publicidade. Começou a trabalhar desde muito cedo, por volta dos 5 anos, com sua bisavó, fazendo salgados, doces, marmitex, entre outras coisas, sempre buscando uma forma de contribuir e complementar sua renda. Essa raiz empreendedora conduziu sua trajetória de vida.
Em casa, na infância e adolescência, seus pais não falavam sobre as questões raciais, exceto pelos clichês, como trabalhar duas vezes mais que os brancos, entre outros, mas sem teoria, sem letramento. Foi na rua que Adriana aprendeu, com o movimento negro, sua identidade, sua cor e o quanto tinha a se orgulhar. “As vivencias em relação ao racismo vieram de fato com a Feira Preta, e a descoberta enquanto mulher negra.”
“Eu era tímida crônica. Eu era periférica numa região de classe média. Apesar de estudar em escolas públicas, nas aulas quase não tinham crianças negras. E sentia o racismo pela forma que era chamada. Sempre preterida nos bailinhos, nos correios elegantes, com apenas mais um colega preto, o “Ben Johnson” (apelido racista, que se referia ao famoso velocista jamaicano, vencedor de medalhas na década de 80). Descobria o racismo de maneira subliminar, quando sempre a associavam a esse amigo. “Vai ser a Adriana e o Ben Johnson”.
Ainda na adolescência, começou a frequentar a cena de baladas de Black Music, da Vila Madalena, onde se identificava com tantos outros jovens negros, que se deslocavam até o local para se divertir. Só quando se envolveu nessas baladas, com jovens negros, que descobriu de fato o que era o racismo, de forma teórica. “Como frequentadora de baladas, isso me fazia ver os jovens negros, cultura negra, música negra.”
Lá, analisando as casas noturnas que frequentava, também tomou consciência de que havia muitos pretos na cadeia de produção como recepcionistas, garçons, equipe de apoio, mas os donos dos locais eram homens, majoritariamente brancos. Na juventude, cursava marketing, e sonhando trabalhar com música negra e começou a trabalhar em uma gravadora. Lá, também enfrentou o racismo, mas de forma mais amena. “Na gravadora, tinham muitos artistas negros. As questões eram mais sutis.”
Mas o mercado tradicional da música já dava sinais de deterioração, e quando perdeu seu emprego, se viu obrigada a trancar seu curso, e correr atrás de algo para se manter. Ciente de que não conseguiria se recolocar no mesmo mercado, começou em 2002 a vender roupas usadas nas feiras livres, juntamente com uma amiga, que vendia pastel e outros alimentos.
Esse foi o seu primeiro empreendimento, o “brechó da troca”, na região da Vila Madalena. Fazendo feiras de rua, certo dia perdeu boa parte do seu investimento, quando foi surpreendida por um arrastão. Daí, surgiu a ideia de criar uma feira sistematizada de fato, para atender o povo preto.
Ambas decidiram criar naquela região a Feira Preta, pra trazer pro centro, dessa vez sem intermediários, o potencial inventivo do povo negro, em contato direto com o consumidor. Feira é democrático. No primeiro ano, com baixo investimento, começaram a mobilizar 5.000 pessoas. E o modelo feira estava comprovado, podendo ser um negócio no futuro.
“Começamos com 40 expositores, com um público de 5.000 frequentadores. No segundo ano, esse público foi aumentando cada vez mais, até que fomos novamente surpreendidas por um processo de abaixo assinado, para retirar a feira da região. Não nos demos por vencidas, e a feira então virou itinerante, passando por vários espaços, levantando a questão do território (onde os pretos podem estar).”
Indo para o Anhembi surgiu a necessidade de transformar a feira num negócio de impacto social, sistematizado com várias frentes. Foi então que a Feira foi remodelada, se transformando num festival. Várias questões foram levantadas, desde quais seriam as atrações até quais artistas seriam convidados. Assim nasceu a plataforma de Afrofuturismo, PretaHub, para mitigar os gaps, com produção de dados, aceleração de empreendedores, inovação, artes e oficinas. A plataforma contempla o Afrolab, Afrohub, Festival Feira Preta, Festival Pretas Potências, e Conversando a Gente Se Aprende.
“A feira surgiu no auge das ações afirmativas no Brasil, quando muitas coisas começaram a acontecer de forma sistêmica. Na época os Racionais MCs estouraram no Brasil. Ilê, Olodum. Foi também a época do auge da Revista Raça. A feira começa olhando para esses movimentos de identidade negra, como parte de um movimento em processo de transformação que o Brasil estava passando na época. Mobilidade social, inserção nas universidades através de cotas e programa de bolsas, políticas raciais”.
Dentro do PretaHub, existem diversos processos sistêmicos, que buscam desenvolver a feira, e o mercado de consumo para a população negra, como um todo. Foi Adriana quem trouxe o tema racial para dentro de sua casa. E foi transformadora a diferença que conseguiu promover em sua família. “Meu avô ia pro metrô distribuir o flyer da Feira Preta. Foi transformador para minha família. Se reconhecer negro, e perceber o seu valor. Minha mãe passou pelo processo de transição capilar somente quando surgiu a Feira Preta”.
Aos 30 anos, Adriana retomou o curso universitário, na universidade Anhembi-Morumbi, em gestão de eventos, com especialização pelo SELAC (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação). Em 2017, Adriana foi eleita pela ONU como uma das 51 pessoas negras mais influentes do mundo, pelo MIPAD (Most Influential People of African Descent ou “Os Maiores Influenciadores Afrodescendentes”, em tradução livre).
Atualmente, Adriana quer ampliar territorialmente a Feira Preta para outros países. Já fez edições na Bolívia, e o projeto é partir para a Colômbia e África do Sul. Durante um tempo, até que a Feira Preta tomasse corpo, voltou a atuar no Corporativo, como Coordenadora, e sentiu de fato o “racismo advanced”, como ela define, com piadinhas e brincadeiras.
Hoje, reconhece que foi um movimento emancipador se reconhecer como mulher negra, através da Feira Preta. Roupas, cabelo, identidade. Perceber o seu valor. E busca transferir, de forma teórica e letrada, seus ensinamentos para sua filha, Clara, de 8 anos, que além de reconhecidamente preta, é também uma multiplicadora.
“Minha filha de 8 anos é quem distribui hoje os flyers da feira! Ela sabe quem foi Zumbi dos Palmares. Já foi a um quilombo. É um serzinho que multiplica informação, sabe das questões LGBTPIAP+. Possui Identidade muito própria, muito segura. E isso foi trabalhado nela desde muito cedo, diariamente. Da escola aos livros. Das conversas aos desenhos. Eu me dediquei pra fazer esse processo acontecer, diferente da minha mãe e minha avó, que não tinham essa bagagem pra me transmitir na infância.”
Adriana considera que esse processo foi um salto quântico, transgeracional, e que gera frutos permanentes pra sua família e pra sociedade. A Feira Preta hoje é o maior evento de cultura negra da América Latina. “É fundamental aquilombar-se, para ter musculatura emocional”, finaliza.