Michel Dias Costa, conhecido na cena musical como Rashid, lançou recentemente “Diário de Bordo 6”, seu primeiro single após um ano sem lançamentos. A canção tem participação do paraibano Chico César e é mais uma parceria de Rashid com um artista referência na música (o rapper já gravou com Mano Brown, Drik Barbosa, Ellen Oléria, Terra Preta, entre outros).
“Diário de Bordo 6” é uma pancada sonora que destoa do que se vê estourando em visualizações no Youtube. A letra, como característica do artista, é uma crônica do nosso cotidiano, usando um texto cinematográfico para relatar as mazelas de um mundo que parece não ter rumo e a reação das pessoas diante da realidade: No meio dos defensor da família/ Que só não defende se a família for preta/ Bancada da Bíblia, da bala e do boi/ tudo lado a lado/ Esse é o BBB que me rouba a brisa”, acusa o músico logo de cara.
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A parceria nasceu após se conhecerem nos bastidores de um show e após entrevistar o cantor para uma live da Twitch a relação se estreitou. Quando Rashid compôs “Diário de Bordo 6”, no início de 2021, enviou para Chico César que respondeu confirmando a participação. Meia hora depois o paraibano enviou um áudio pelo direct do Instagram que sumiu após uns minutos, colocando a melodia no limbo da internet. Essa história é contada aos risos por Rashid. Três dias depois as vozes de Chico César estavam gravadas.
Logo após o lançamento do ótimo disco, “Tão Real”, o mundo parou por causa da pandemia e o trabalho não ganhou turnê e o carinho do público ao vivo. “Tinha acabado de lançar e não tive a oportunidade de virar o país, fazendo shows.. Fiz um único show de lançamento em São Paulo, que foi incrível e isso meio que demonstrava o que seria, né? A gente ficou nessa, tipo o gato de Schrodinger. ‘o bagulho vai ser pá, mas nunca saberemos.’ Isso me colocou a pensar no sentido de várias paradas e por isso eu dei um passo para trás”, reflete Rashid.
Como muitos brasileiros, Rashid ficou na dúvida sobre como se daria o trabalho em um cenário tão atípico quanto uma pandemia. A indústria da música precisou se reinventar, mas cada estilo tem um nicho de público se comportando de forma distinta assim como seus artistas. Para o rapper, se trancar no estúdio e passar o dia produzindo batida foi uma forma de se achar, assim como trocar esses sons com os amigos por whatsapp e trocando experiências como se fosse o início da carreira. “O sentido estava aí. Estou buscando cura nas minhas músicas, mas não via sentido em ‘preciso colocar isso para fora, as pessoas precisam ver isso aqui que é super urgente’. Na real eu não estava nem sangrando, mas colocando algumas emoções para fora, que era o que eu queria ouvir”, afirma.
Enquanto as lives de música festiva e os clipes de trap ostentando festa e riqueza pipocavam, o garoto do Lauzane pensava sobre a necessidade de criar canções que refletissem o momento e que daqui 50 anos seja lembrada como um diário, que por consequência é o nome da série de singles ‘Diário de Bordo’. “Quando a gente olha para o período da ditadura, tem várias músicas que a gente pode usar como referencial. Já que na escola a gente não aprendeu da forma mais devida e correta sobre aquele período e hoje se levanta muita dúvida de como foi aquele período, os artistas foram lá e deixaram seus retratos”, aponta.
Já se pode dizer que no futuro, Rashid estará entre um dos cronistas de seu tempo. Surgiu com uma geração que nos deu Emicida e o reconhecimento de Criolo. Os três caminharam para o caminho de virarem referência, assim como o ídolo maior do rap, Mano Brown. Ainda que a comparação pareça absurda, muitos meninos vão conhecer a turma surgida nos anos 10 antes de ir para a velha guarda e isso é louvável. Pegar um bastão pesado e manter aceso o interesse pelo rap dentro de uma indústria bombardeada por marketing de dupla sertaneja é uma tarefa árdua.
“Eu fico pensando que daqui 50 anos vai ter vagabundo discutindo se isso tudo aqui rolou mesmo ou foi um plano dos comunistas, da Globo com o resto do planeta para derrubar o cristianismo no mundo. Aí a música que a gente faz é uma forma de colocar uma pedra no caminho e afirmar que esse bagulho aconteceu”, diz o músico que faz dessa afirmação um complemento à sua última faixa: “E esse discurso negacionista ‘tá tão no extremo/
De forma insana/ Que às vezes torço/ Tomara que encontre e caia da beira da terra plana”.
Sobre o descolamento da realidade de alguns artistas do rap que continuam lançando clipes em festa, Rashid é lúcido ao entender que a turma mais nova que veio depois ainda não amadureceu totalmente algumas ideias e usam a música para refletir as preocupações da idade. Outro fator é que antes da pandemia alguns começaram a explodir e não tinham mais como voltar atrás na temática, uma vez que foi o que fez o público se identificar. Uma vertente do rap que embarca numa onda que foi bem sucedida com o funk ostentação paulista é o trap. Passando por Dfideliz, Raffa Moreira e o Matuê, sem exceção há um discurso que não é consonante com a imagem tradicionalmente atrelada ao rap, que é a de letras reflexivas e de contestação. “O pessoal do trap vai ter que entrar numa de defender o movimento porque o que mais vai aparecer é gente aparecendo para sugar isso, assim como foi com o rock uns anos atrás. Se deixar eles vão sugar, sugar, sugar e quando não tiver nada eles vão largar mão e deixar cambaleando para ir para próxima coisa que vai dar lucro para eles, entendeu?”, diz Rashid.
Assim como qualquer estilo de música, o rap também sofre com a dicotomia “entretenimento vs relevância cultural”. Não que não se possa casar os dois e isso também é motivo para reflexão do compositor: “Tem o entretenimento e o movimento cultural e o trap já se mostrou muito bem sucedido enquanto entretenimento e agora é hora de se mostrar bem sucedido enquanto movimento cultural também. Agora é o momento desses artistas que estão na linha de frente do trap entenderem que geram lucro e quem gera lucro gera interesse e a gente tem que tomar cuidado com os interesseiros. Em determinado momento vão querer largar a gente com uma mão na frente e outra atrás e a gente precisa se proteger”, diz Rashid com a experiência de quem vem transitando pela cena há mais de dez anos. “A cultura tem que ser protegida. Ela é nosso tesouro”, conclui.
Como qualquer ser humano minimamente consciente, Rashid precisou usar válvulas de escape que precisavam ir além da própria música. Se por um lado versos raivosos como “minha caneta tava engasgada/ deixa ela cuspir”, por outro é necessário respirar longe das notícias e só abrir concessão de informação para mensagens da mãe. “A saúde mental é uma pauta no rap, uma pauta no movimento negro, na sociedade em geral. Em vários momentos me pergunto se eu estou bem ou eu estou me fazendo de forte?”, se pergunta. Com atual cenário político e econômico do país é natural que quem use arte como inspiração trave ou se sinta impotente, entende o rapper que para ajudar a respirar joga videogame com irmão mais novo e iniciou o podcast com a esposa, “Cama Mesa e Trampo”, onde conseguiram resolver alguns problemas de diálogo entre o casal.
No início da década , Rashid tinha a imagem ligada a outros dois nomes que emergiram da cena: Projota e Emicida. Autodenominados como “3 temores” e chamaram atenção no feat da música “Nova Ordem. Sobre Projota, Rashid nega que houve uma cisão, dizendo que o ex-parceiro é mais como um colega de escola que viajou e foi para outra cidade trabalhar de outra coisa. No caso de Emicida as coisas são diferentes. Ambos costumam aparecer nas mesmas listas de melhores discos de rap e aparecem constantemente com artistas que dialogam entre si. Sobre uma das composições em dupla, Rashid conta que Emicida propôs que compusessem uma música que contrariasse as expectativas em relação aos dois. Que não fosse um rap pesado, mas uma canção de apelo pop que resultou no êxito de “Pipa Voada”. Rashid conta ainda que Projota sempre quis enveredar por raps que atingissem a massa, e assim foi. “Eu percebo nitidamente os caminhos que os caras seguiram e tento achar o meu. Eu como caçula da turma fiquei nesse desafio de achar o meu caminho e não ser nem um e nem o outro. Eu enfrentava muito isso de as pessoas dizerem ‘ah, você fez uma música mais assim tipo o Projota, agora você está tipo o Emicida e eu só estava tentando ser tipo eu, né, mano?”, desabafa.
Quem ajudou Rashid a entender algumas decisões a tomar foi Alexandre, vocalista do Natiruts, que falou sobre sua experiência de dar passos atrás no mainstream em momentos oportunos para firmar uma identidade desvinculada de rótulos que grandes sucessos podem trazer.
Apesar de consolidado na cena, ter gravado com Mano Brown, Max de Castro, cantado com Martinho da Vila, Rashid ainda se encanta com as conquistas de sua arte. “Eu observava meus ídolos e ficava contando os dias e as horas, imaginando em que momento eu conseguiria estar perto dessa pessoa. Toda essa magia ainda existe muito. Eu estou na maior ideia com Chico e penso ‘estou fazendo som com Chico César na batida do DJ Caique”, relata com olhos brilhando.
A necessidade de troca faz parte do moleque do Lauzane que abriu espaço na cena. O rapper sente vontade de entender o outro, almoçar junto e acha que pode até se passar por chato devido a isso, mas a empolgação com que fala de seu trabalho contagia e a julgar pelos artistas que aceitam trabalhar em suas composições a impressão se confirma.
A música recém lançada tem um clipe com referências aos dias de confinamento e para o artista é um de seus clipes que mais ajudam a complementar a música.
Como não poderia deixar de ser, o artista reflete sobre os momentos sombrios que assolam o país. Ataques aos quilombolas, indígenas, desmatamento, governo ultraconservador. “No Brasil de Bolsonaro o público do rap mesmo parece não compreender a gravidade das coisas e a gente vê que estamos na ciranda da hipocrisia porque o Bolsonaro é um monstro que foi criado pelos jornais, Jornal Nacional e tal. É um monstro que eles ajudaram a construir, mas talvez eles não imaginavam que seria esse monstro. Eles queriam outra pessoa, mas eles ajudaram a criar esse monstro e ajudaram a gente a entrar nessa ciranda da desmoralização de tudo que pode provocar um pensamento crítico. Ou seja: tiramos o pensamento crítico do caminho e colocamos um monstro”, critica.
Tem uma frase que diz que “a história sempre se repete, seja como farsa ou como tragédia”. Para Rashid isso é muito claro. “Na época da ditadura, da marcha da família com Deus já tinha gente dizendo que o Brasil nunca será Cuba. Então é uma coisa antiga. Pessoal acha que está inventando a roda, mas na verdade não. Eles tem opinião formada pela TV e depois atacam essa mesma Tv que formou a opinião deles junto com as informações que recebeu da tia no Whatsapp”, conclui aos risos.
Rashid demonstra ser bem informado sobre tudo que permeia o cotidiano do país, da cultura do cancelamento das quais muitos pretos participam sem perceber que “quem não pode errar é nós” até a falta de autocrítica da esquerda branca. “Muitas vezes um irmão fala uma coisa que não devia e a internet corre para bater o martelo, mas ninguém compreende também que aquela personalidade está em formação. Aquela pessoa também está se formando enquanto ativista, enquanto militante, enquanto jornalista, qualquer coisa! Aquela pessoa está na luta dela para se formar também,e esse momento exige que a gente esteja no fronte opinando sobre várias coisas que às vezes a gente não tem um conceito formado e esse Brasil de hoje coloca a gente nessa situação de estar na linha de frente o tempo inteiro”.
Diante da recente chacina no Jacarezinho, o rapper diz que o acontecido corta o coração e os comentários sobre o caso são de retalhar. Nina Simone disse uma vez que “o artista deve refletir o seu tempo” e Rashid vai deixando um diário de bordo aos que virão.
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