O continente africano é repleto de cultura que, por vezes, desconhecemos. Pensando nisso, o sociólogo, cientista social, pesquisador e escritor Rhuann Fernandes escreveu o livro* “Casamento tradicional Bantu: o Lobolo no sul de Moçambique”, o primeiro livro com essa temática no Brasil. O jovem de 23 anos é original da cidade de São Gonçalo, situada na região metropolitana do Rio de Janeiro. De origem humilde, veio do bairro periférico Jardim Catarina e lá fundou a Organização Comunitária “Nós Por Nós”, voltado para a desigualdade social e educação. Rhuann se formou em Ciências Sociais pela UERJ com ênfase em sociologia e cursa o mestrado em Ciências Sociais da mesma universidade estadual.
Entrevistamos o sociólogo para entender melhor sobre a escolha de Moçambique como intercâmbio, seu TCC e o ritual do casamento Bantu, o lobolo e falarmos sobre o livro. Confira!
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“Fui afetado pela riqueza de signos presentes nesta cerimônia”
MUNDO NEGRO: Ao escolher seu intercâmbio, por que fugiu do padrão europeu – estadunidense?
RHUANN FERNANDES: Bem, confesso que a escolha por Moçambique foi um ato político, uma vez que tive a oportunidade de optar por países europeus, uma tendência comum quando se resolve estudar fora. Entretanto, havia uma necessidade afetiva de confrontar as escolhas comuns pelas epistemologias do Norte, de um conhecimento produzido na Europa, nos EUA e no Canadá e reproduzido por autores do Sul. O fato de ser um estudante negro profundamente influenciado pela cultura africana e afro-brasileira também me orientou na decisão.
Como há alguns anos o movimento negro vem evidenciando: nós vivemos uma violência de natureza epistemológica profunda. Justamente por esse aspecto, resolvi escutar outras vozes. Afinal, há diferentes maneiras de produzir conhecimento que podem ser encontradas longe das universidades europeias, canadenses ou estadunidenses, o que chamo de mundo euroamericano.
MUNDO NEGRO: Por que Moçambique?
RHUANN FERNANDES: Tive a oportunidade de submeter candidatura para dois países africanos: Moçambique e Angola. Neles, havia instituições que a UERJ era parceira. Tive contato com muitas pessoas pretas que haviam realizado intercâmbio em Moçambique, (…) a conversa com elas foi preponderante para minha decisão. Além disso, economicamente Moçambique estava mais barato que Angola. Então, esses entre outros fatores contribuíram para minha decisão. É importante salientar: no dia 28 de agosto de 2018, embarquei para Maputo, em Moçambique, com o propósito de realizar um intercâmbio de graduação na Universidade Pedagógica (UP) por meio da Diretoria de Cooperação Internacional da UERJ (DCI), durante sete meses. Antes de sair do país, meu objetivo estava traçado: cursar disciplinas que pudessem expandir meu arcabouço teórico sobre uma pesquisa para monografia que estava realizando desde o terceiro período da graduação, intitulada “Contribuições da teoria pós-colonial para o campo sociológico”. Além disso, meus interesses estavam concentrados em áreas como filosofia africana e sociologia africana. Ou seja, não esperava ou não fui com intenções de investigar o casamento bantu. Por isso, costumo dizer que a minha pesquisa, sem arrogância, foi um sucesso. Essa é a magia das ciências sociais: deixar que uma cultura diferente da sua te afete e que isso, em alguma medida, te provoque reflexões profundas em paralelo com a bagagem intelectual e com sua trajetória.
MUNDO NEGRO: Desfrutando da experiência de Moçambique o que o motivou a escolher o ritual Lobolo? Como ouviu falar dele?
RHUANN FERNANDES: Bem, em Moçambique, tive muitos conflitos raciais com brancos brasileiros. Fiquei muito incomodado pela maneira a qual eles observavam os costumes tradicionais, eram muito etnocêntricos, demonstravam um ar de superioridade e pouco se relacionavam com os moçambicanos. Mas algumas dessas pessoas falavam negativamente do lobolo, interpretando-o a partir de teorias eurocêntricas, extremamente localizadas, sem considerar o contexto histórico, cultural e político do país, como por exemplo, o feminismo, como algumas das mulheres brancas que tive contato intitulavam-se. Dessas implicações e conflitos surgiu minha curiosidade, mas não o desejo de investigar o casamento entre as pessoas do Sul do país.
Uma semana após chegar à instituição, encontrei duas amigas brasileiras (negras) que estavam indo à secretaria de humanidades e pedi orientações. Por sorte, elas disseram que deveria pegar uma disciplina que havia descartado: Antropologia Cultural de Moçambique. A disciplina na qual não iria me inscrever foi a que mais me chamou atenção e a que me fez mudar o tema da monografia.
O tema das primeiras aulas versou sobre as relações de parentesco no Sul de Moçambique, caracterizado pela patrilinearidade. Na quarta aula, tive contato com o tema do casamento bantu no sul de Moçambique, conhecido como lobolo. Nesse momento, fui afetado pela riqueza de signos presentes nesta cerimônia. Pude compreender as razões pelas quais a antropologia desenvolvida no Sul de Moçambique e os principais debates teóricos giravam em torno desse casamento. O mais interessante foi o fato de o professor, durante quase dois meses, discutir as distintas interpretações desse fenômeno na história do país. À medida que frequentava a disciplina e debatia os textos, tornava-me cada vez mais próximo do tema. Então, decidi selecioná-lo para discussão em minha monografia, efetuando uma troca. Na realidade, correlacionei os dois temas e julguei que iria discutir o “lobolo pós-colonial”.
MUNDO NEGRO: Você teve contato direto com o ritual?
RHUANN FERNANDES: Sim, acredito que esta é a parte mais importante do meu trabalho. O meu trabalho de campo foi muito conflitante, sobretudo pelo fato das cerimônias que participei serem realizadas na língua changana (uma das línguas locais que resistiu ao avanço do colonialismo). Minha primeira oportunidade de trabalho de campo apareceu quase dois meses após minha chegada a Moçambique. Nessa primeira experiência, pude ver como os atores sociais no contexto urbano mobilizam aspectos da religião tradicional africana, do cristianismo e do islamismo em seus discursos para conversar com os mortos por intermédio do lobolo, inclusive com objetivo de evitar acontecimentos indesejáveis no futuro. Por outro lado, observei as negociações entre os noivos e as famílias que ocasionaram mudanças significativas em algumas etapas da cerimônia, o que me gerou impasses, mas, ao mesmo tempo, mostrou-me evidências de continuidades e descontinuidades do ritual que só foram compreendidas após o intenso contato e sucessivas conversas com o casal e seus familiares.
Depois do casamento, lembro-me que regressei à residência da universidade e lá encontrei com Abel Henriques, um companheiro moçambicano. Ele disse estar feliz por mim, mas que eu não conheceria o lobolo enquanto não frequentasse o “Moçambique Real”, pois apenas nesse contexto conseguiria observar a natureza do matrimônio tradicional. Para ele, eu deveria sair do meio urbano, pois a maioria dos pesquisadores ocidentais realizam suas pesquisas apenas em Maputo, capital do país. Entretanto, era difícil verificar investigações no interior ou zonas rurais, onde se concentrava a maior parte da população.
Articulei minhas dúvidas e apresentei para meu professor orientador Miambo. De imediato, fitou-me e exclamou: “É, você tem um interlocutor, ele disse que você precisa sentir esta experiência, então, tente vivê-la”. A bela ironia do destino trouxe, por meio de Abel, um convite para um lobolo de seus tios Candido Afonso Tune e Fátima Tune, em Madendere, no interior da província de Gaza.
Ao realizar essa viagem, deparei-me com uma situação contrária à que esperava. Não se tratava de um lobolo, mas sim do cumprimento de duas etapas “pendentes” após dez anos de sua realização: um casamento civil e um casamento canônico numa igreja cristã. Por outro lado, fui paciente e aguardei meu encontro com essas circunstâncias que o campo ofereceu. Foi nesse contexto que pude conhecer com mais profundidade, a partir dos meus interlocutores, a espiritualidade e a função dos vanyamusoro (curandeiros) no lobolo; tomar conhecimento de outros rituais de povos bantu, bem como a relação de sincretismo que perpassou a história de Moçambique antes mesmo da colonização. Além de ser incitado pelo discurso de meus interlocutores com relação à dicotomia rural versus urbano.
Desta maneira, refleti sobre os vínculos espirituais no contexto rural e as situações urbanas por intermédio da rede de contatos na qual fui inserido, bem como as distintas percepções de líderes religiosos sobre o lobolo. Notei também a importância que davam a concretizar, antes de tudo, o lobolo para, posteriormente, englobar outras formas de casamento em respeito aos ancestrais.
MUNDO NEGRO: Como o ritual é realizado?
RHUANN FERNANDES: Bem, em resumo, trata-se de um casamento costumeiro e recorrente, em que a prática fundamental consiste em dar bens à família da noiva para realizar uma união reconhecida entre os parentes do noivo e os da noiva, num processo que pode demorar anos. Procura-se, por intermédio do lobolo, uma harmonia social: a comunicação entre os vivos e os seus antepassados, na qual é estabelecida uma garantia material do vínculo espiritual.
Apesar das modificações atribuídas ao lobolo durante a sua prática, há algumas fases básicas tradicionais para sua realização, em síntese: a primeira etapa está associada à intenção do noivo estabelecer um vínculo com a mulher desejada, para tal, parentes e amigos próximos aparecem na casa da mulher num encontro denominado hikombela-mati (pedir água). Neste caso, seus representantes levam alguns presentes específicos e abrem o diálogo para futura cerimônia de lobolo, identificando a mulher designada pelo noivo. Este encontro estabelece o primeiro laço com a mulher e familiares dela por parte do noivo e de sua família, e os presentes servem como mão de entrada. Nesta ocasião, os familiares da noiva aproveitam para entregar a lista de exigências (carta de lobolo) para realização da cerimônia. Após alguns meses ou anos, dependendo da capacidade do noivo para adquirir os presentes, o lobolo é realizado.
Em geral, bem antes da cerimônia de lobolo ocorre o kuphalha, um culto realizado para os antepassados, para sua invocação e, posteriormente, o diálogo com os mesmos para que o lobolo ocorra bem. Durante o lobolo, de acordo com os pedidos, os parentes do noivo atribuem presentes à família da noiva e as negociações entre eles se iniciam. Todos os itens são verificados, além de situações lúdicas que são criadas. O noivo fica ausente neste momento. E a noiva, apesar de não estar presente nas negociações iniciais, por outro lado, é chamada para avaliar os presentes e ouvir o pedido de casamento. Após o lobolo, o noivo se torna mukon’wana (genro) e, por fim, há o último processo: xigiyane, em que os pertences da noiva são levados por seus familiares para sua casa nova.
MUNDO NEGRO: Qual o grande diferencial do ritual Lobolo para os casamentos que costumamos assistir?
RHUANN FERNANDES: Esta é uma ótima pergunta. Bem, como descrito acima, a questão principal do lobolo é a espiritualidade e os laços de parentesco, caracterizado pela patrilinearidade. Então, diria que a diferença central é a característica espiritual. O lobolo representa hoje modos de solidariedade que contestam o puro liberalismo capitalista. Para além de cerimônia nupcial com distribuição de dinheiro e presentes, o lobolo aparece aqui como uma potente afirmação de outros modos de viver a economia. É uma continuidade de uma tradição que prova que toda troca econômica é um ato moral.
Em minhas experiências, percebi que o lobolo pode ser compreendido como um rito que une conjugalmente um homem e uma mulher e que os conecta a uma comunidade de vivos e uma construção histórica feita pelos antepassados que é respeitada no ato da cerimônia. A instituição dos laços e conexões entre os vivos e os mortos faz com que a prática continue sendo efetuada. No sul de Moçambique, esse rito consagra diretamente o matrimônio, sendo substancialmente mais importante que casamentos de outra ordem. A transcendentalidade do lobolo sobre o amor é algo assumido, evidenciando a relação com o mundo dos antepassados do noivo e da noiva, em um contato direto entre vivos e mortos. A harmonia social entre noivos e famílias ocorre por meio da ligação com os espíritos antepassados e com o cumprimento de suas exigências. Se tudo ocorre de acordo esses vínculos e exigências, haverá bênçãos e garantia de prosperidade à nova família que se formou.
Ou seja, o lobolo transcende o amor, uma vez que é feito para os antepassados.
Não há uma ideia de amor romântico, tal como no modelo monogâmico que nós tanto cultuamos. Em contato com a espiritualidade, diria que presenciei a noção de um casamento integrado entre os espíritos e os vivos, passado e presente, a vida é observada de trás para frente. Assim, o casamento não significa pensar apenas no futuro, não é uma busca incessante por ele. Não é algo que vai apenas organizar e gerar estabilidade.
É, inicialmente, pensado a partir do passado, representa a pulsação de vidas que vieram antes e os antepassados estarão com o casal interminavelmente, se isso for respeitado. O papel do lobolo é basicamente conversar com os antepassados para identificar os perigos da vida e, ao mesmo tempo, encontrar respostas para promover o bem-estar social do casal.
MUNDO NEGRO: É viável adaptar o ritual para o Brasil?
RHUANN FERNANDES: Esta pergunta que você me fez é muito importante, pois penso que muitos ainda não estão preparados para discutir outras formas de relacionamento e conjugalidade. Sendo assim, temos que nos perguntar: a monogamia, o sonho de casamento com vestido branco entrando numa igreja cristã, é natural ou socialmente construído? Quando aprendi ser monogâmico? (…) Quer dizer, quero ressaltar que nossos sentimentos são construções culturais com reflexos sociais e políticos, não são naturais ou espontâneos. Com isso, precisamos desconstruir alguns hábitos, precisamos nos reeducar e conhecer outras formas (…) Com este movimento, acredito que seja possível sim praticar o lobolo e outras formas de casamento ainda não conhecida por nós. Acredito que as ciências sociais têm um papel fundamental nisso.
MUNDO NEGRO: Em que momento a escolha do TCC se tornou um livro?
RHUANN FERNANDES: Foi um processo mais rápido que esperava. Assim que defendi a monografia com êxito e ganhei duas premiações com a pesquisa, conversei com a editora e fechamos o contrato. Não vou mentir que tinha um objetivo de publicar a monografia como livro e, por isso, me dediquei tanto. Antes de chegar ao Brasil, já havia notado que não tinha nenhum livro sobre o tema no Brasil e, a partir daí, fiz minhas projeções e sustentei minha ambição. Pelo visto funcionou, né? (risos).
MUNDO NEGRO: Qual experiência teremos ao ler o livro?
RHUANN FERNANDES: Olha, o que mais me agrada nesta obra é que não se trata de um debate puramente acadêmico, mas de histórias de dois casamentos incríveis, que descrevo com muita preciosidade, para fazer o leitor se sentir lá, na cerimônia de lobolo. Então, posso dizer que a experiência que o leitor terá é sentir o Sul de Moçambique na pele, perpassando pela história política do país, as principais contribuições civilizatórias dos povos bantu daquela região e conhecerá outras formas de matrimônio possíveis para o nosso contexto. Enfim, parafraseando a querida Pauline Chiziane, diria que contei uma história para levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão.
MUNDO NEGRO: Um conselho para outros jovens negros, é…?
RHUANN FERNANDES: Para o povo negro desejo unidade política para transformação da calamidade, da situação de holocausto racial que vivemos há mais de 500 anos. Para os mais jovens, que perdem o direito de viver tão cedo, meu conselho é que escutem os mais velhos, principalmente os nossos pais, para progredirmos, para termos base e não deixarmos de tentar… jamais.
*Para informações acerca da venda do livro: @rhuannfernandes
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