Mundo Negro

Quantas vezes uma mulher negra precisa recomeçar nesta sociedade? 

Foto: reprodução

Diego do Subúrbio

Em 1988, Vale Tudo apresentava Raquel como uma personagem que, mesmo passando por dificuldades, conseguiu se consolidar como empresária, referência de competência, independência e integridade.Sua trajetória de ascensão mostrava que a superação era possível, ela não precisou “recomeçar” para reafirmar sua dignidade ou posição social, e sua jornada inicial, vendendo sanduíches na praia, era apenas um ponto de partida transitório em sua construção como mulher empreendedora. No remake de 2025, porém, a narrativa coloca Raquel, agora uma mulher negra, em um estado de sobrevivência, vulnerável e dependente de personagens como Celina. Isso levanta questionamentos profundos, ela não estudou? Não se profissionalizou? Por que uma mulher que poderia ser símbolo de autonomia e referência para população negra volta a um ciclo de fragilidade? A escolha do roteiro, mesmo que intencional, sugere que a ascensão da mulher negra nunca é plena ou definitiva, reforçando estereótipos sobre precariedade e dependência, em contraste com a trajetória de Raquel de 1988. 

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A honestidade de Raquel em 2025 não é apenas uma escolha moral diante da corrupção, é uma luta constante contra estruturas racistas que historicamente não permitem que pessoas negras permaneçam de pé. Sua queda, então, não é apenas pessoal, mas coletiva, refletindo histórias de mulheres negras empurradas para informalidade, obrigadas a sustentar famílias sozinhas, cujos caminhos foram interrompidos pelo racismo e pelo abandono do Estado. O recomeço de Raquel denuncia uma ferida profunda, a naturalização da instabilidade da população negra, como se cada conquista fosse temporária e frágil. A escritora Chimamanda Ngozi Adichie chamou de “o perigo de uma história única”: “O problema com os estereótipos não é que sejam falsos, mas que sejam incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história” 

Beatriz Nascimento, no livro “O Negro Visto por Ele Mesmo”, lembra que a vida da população negra é muito mais complexa do que a televisão costuma retratar: 

“ A TV veicula uma ideologia aparentemente calcada num dado da realidade socioeconômica, que é o fato de grande parte dos pretos ainda hoje serem integrantes dos extratos sociais mais baixos da população. Entretanto,mesmo nessa mobilidade, todos sociais. Nem todos os indivíduos são necessariamente nas profissões do setor de serviços, nem todos são serventes e escravos, profissionais liberais ou, comerciários, funcionários públicos, qualificados ou não, comerciários… Como no passado, tivemos pretos proprietários, livres, políticos e também profissionais liberais, ao lado de operários e serventes escravos.” 

Mesmo com coautores negros, nas salas de roteiro, a autoria principal das novelas ainda é majoritariamente branca, concentrando o poder de decisão sobre o que é contadao e como é contado. Quantos autores negros, ao longo dos 60 anos da TV Globo, receberam reconhecimento no mesmo nivel de Glória Perez, Walcy Carrasco ou Manuela Dias? A presença negra muitas vezes se limita à colaboração secundária, sem acesso à liderança criativa. 

É fundamental compreender que ter autores negros na construção de nossas narrativas não limita a criatividade, pelo contrário, enriquece o campo narrativo com experiências, referências e perspectivas autênticas. Não se trata de impedir que a branquitude conte histórias, mas de assumir a responsabilidade de contar narrativas negras de forma íntegra e com profundidade, especialmente em tempos em que estamos apenas começando a ocupar espaços de protagonismo. Romper com a lógica atual exige mais do que abrir portas, é preciso entregar as chaves. A Raquel de 2025 não deveria ser

colocada em vulnerabilidade apenas para simbolizar resistência, ela deveria ser representada com permanência, dignidade e complexidade, abrindo espaço para refletir quantas vezes uma mulher negra precisa recomeçar nesta sociedade e exigindo coragem do Brasil e da indústria cultural para enfrentar essa pergunta de forma honesta e transformadora. 

Apoie a continuidade e permanência de Diego na universidade pública através da sua vaquinha via Pix: diegodosuburbio.contato@gmail.com e mais informações no perfil @diegodosuburbio

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