Mundo Negro

Preta Brasileira: o salão que nasceu com R$ 800 e virou referência de beleza afro e formação de trancistas

Foto: Divulgação

No Mês da Consciência Negra, histórias de mulheres negras que transformam seus territórios por meio da economia criativa ganham ainda mais força. Entre essas lideranças está Leia Abadia, fundadora do salão Preta Brasileira, um dos empreendimentos de beleza afro mais influentes da zona leste de São Paulo. Leia iniciou o salão em 2010 com apenas um espelho e R$ 800. Quinze anos depois, o que começou como um sonho individual se consolidou como referência na estética afro, especializado em cabelos crespos e cacheados, com múltiplas unidades em bairros de maioria negra. Hoje, o Preta Brasileira atua também como um hub cultural voltado para autoestima, formação profissional e impacto social.

Leia divide a gestão com as irmãs Suelen Lima, Glaucileia Fátima e Roselaine Silva. Cada uma ocupa um papel estratégico: Suelen Lima, artista plástica e trancista, conduz o Marketing e as Mídias Sociais; Glaucileia Fátima atua no setor de Recursos Humanos; Roselaine Silva, matemática e engenheira financeira, é responsável pelo Administrativo, Financeiro e Projetos; e Leia Abadia lidera a visão e o propósito do salão. Juntas, elas formaram uma estrutura sólida que impulsionou o nascimento do Preta Cultural, braço dedicado à formação de trancistas, rodas de conversa e ações de valorização da estética negra. “Trabalhar com as minhas irmãs é um ato de amor e resistência. O Preta Brasileira é mais do que um salão: é um espaço de transformação”, afirma Leia.

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A história de Leia ecoa a realidade de milhares de mulheres negras que encontram no empreendedorismo não apenas uma oportunidade de renda, mas um caminho de autonomia e reconstrução de identidade. O recente estudo Empreendedoras Negras 2024, do Instituto Rede Mulher Empreendedora (RME), reforça esse cenário: 86,2% das mulheres negras entrevistadas empreendem ou trabalham por conta própria. Muitas entram no setor após viverem discriminação racial no mercado de trabalho — uma motivação citada por 9,1% das entrevistadas.

O mercado de beleza aparece como um dos principais espaços de atuação, reunindo 19% dessas empreendedoras. O dado revela como saberes ancestrais, como o trançado, se reinventam como negócios contemporâneos. A recente oficialização da profissão de trancista pelo Ministério do Trabalho também fortalece essa cadeia. Para Leia, o reconhecimento valida o que ela sempre defendeu: “as trancistas entregam identidade, autoestima e futuro e, por isso, devem se posicionar como empresárias”.

Mas, apesar dos avanços, o estudo do RME também escancara que mais de 70% das empreendedoras negras relatam ter vivido discriminação racial no ambiente de trabalho, e metade afirma que o racismo ainda dificulta a expansão dos negócios — seja no acesso a crédito, na relação com clientes ou no alcance a redes profissionais.

Esse cenário mostra que o empreendedorismo feminino negro ultrapassa a ideia de iniciativa individual. Ele se consolida como prática política. A filósofa Djamila Ribeiro já afirmou que fortalecer negócios negros “não é caridade, mas uma questão de economia e política”. Para ela, apoiar mulheres negras que empreendem é questionar estruturas historicamente excludentes e redistribuir oportunidades em um país marcado por desigualdades profundas.

Redes de apoio: mulheres investindo em mulheres

Em meio a esses desafios, um elemento se destaca como fator de sucesso: a solidariedade e o investimento mútuo entre mulheres negras. O caso de Leia Abadia e do Preta Brasileira ilustra bem esse princípio. Além de criar um negócio sustentável para si, buscam agora alavancar outras profissionais negras por meio da tecnologia. Ela está à frente do desenvolvimento da Ibraid, uma beauty tech concebida para conectar trancistas, consumidoras e lojistas em uma plataforma digital. A proposta da Ibraid é ambiciosa e inovadora: usar tecnologia contemporânea para ampliar o alcance de um saber ancestral, criando uma rede que facilite a contratação de trancistas, ofereça capacitação e gere inclusão financeira para essas profissionais. Essa startup nascente, gestada a partir de uma ideia vencedora em hackathon, já nasce com apoio de outras mulheres e organizações alinhadas à causa. O hub de impacto social CIVI-CO, por exemplo, acolheu a Ibraid em seu espaço, dando suporte estrutural para o projeto decolar.

Outra parceria essencial vem da tecnologia. A Baruk, uma das poucas empresas brasileiras de inteligência artificial fundadas por uma mulher negra, tornou-se aliada estratégica da Ibraid. À frente da empresa está Ana Cabral, CEO da Baruk, que acredita que investir em mulheres negras é um caminho direto para a transformação estrutural.

“Investir em mulheres pretas e periféricas não é apenas uma questão de justiça social, é uma estratégia para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil”, afirma Ana. Segundo ela, ao direcionar capital, conhecimento e oportunidades a esse grupo, estamos corrigindo uma falha estrutural que limita o próprio potencial do país. 

“O retorno desse investimento é multifacetado. Economicamente, estamos desbloqueando um potencial de consumo, inovação e geração de empregos imenso. Mulheres, especialmente as negras, tendem a reinvestir cerca de 90% de sua renda em suas famílias e comunidades, o que significa que cada real investido nelas gera um efeito multiplicador, fortalecendo a economia local de forma sustentável. Socialmente, ao apoiá-las, quebramos ciclos de pobreza e promovemos a diversidade no ecossistema de inovação. Novas perspectivas geram novas soluções para problemas antigos, criando um mercado mais resiliente, criativo e conectado com a realidade da maior parte da população brasileira. É um investimento que gera dividendos em capital humano, social e financeiro”, explica Ana Cabral.

A atuação da Baruk vai além do aporte financeiro. Ana estrutura seus investimentos com três pilares: capital inteligente com mentoria estratégica, acesso a redes qualificadas e fortalecimento da liderança empreendedora. Isso inclui treinamentos, apoio emocional e abertura de portas em um mercado que historicamente invisibilizou mulheres negras.

Ela destaca que, com apoio certo, as empreendedoras negras deixam de atuar na sobrevivência para alcançar a expansão. “O resultado mais transformador, no entanto, é ver essas mulheres, que sempre estiveram acostumadas ao trabalho duro e solitário, agora contarem com recursos financeiros confortáveis e, principalmente, com tempo para se dedicarem ao crescimento estratégico de seus negócios. Isso prova que, com o aporte certo, o talento que sempre existiu floresce e gera um impacto exponencial”, enfatiza.

Essa aliança entre empreendedoras cria um ciclo positivo de oportunidades. A Ibraid, prevista para ser lançada em breve, já envolve dezenas de trancistas e parceiras que participarão de sua construção coletiva. Não se trata apenas de um novo aplicativo, mas do que Leia chama de “tecnologia ancestral” caminhando de mãos dadas com a tecnologia digital. “Religar a tradição ao futuro é o que estamos fazendo. Trança e tecnologia podem andar juntas para gerar riqueza na periferia”, diz Leia, ao comentar a sinergia do projeto. Iniciativas assim mostram que, quando mulheres pretas investem em mulheres pretas, os ganhos são compartilhados, há geração de renda, mas também fortalecimento identitário e comunitário.

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