A pesquisa sobre o Perfil da Enfermagem no Brasil, um dos diagnósticos mais amplos sobre a profissão de enfermagem realizada na América Latina, mostra que a enfermagem do Brasil é composta por 53% de negros e negras. Além de ser predominantemente feminina, sendo composta por 84,6% de mulheres, de acordo com a mesma pesquisa. Mesmo assim, a luta pela igualdade e valorização ainda é árdua e contínua.
Hoje o #JulhoDasPretas é com a enfermeira Jacqueline Torres, que atua no Faculty do IHI, na função de Diretora Técnica do Projeto Alcançar (que tem o objetivo de reduzir a mortalidade materna e neonatal em Moçambique). Conheça a história da mulher eleita Top Voice Saúde 2020 no LinkedIn e fundadora do projeto Enfermeiras Que Mudam O Mundo!
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As dificuldades da enfermagem:
Graças a minha profissão conquistei liberdade financeira, liberdade geográfica, liberdade emocional e liberdade de tempo, algo que não é muito comum na enfermagem, categoria majoritariamente feminina e negra, submetida a múltiplas opressões. Baixos salários, carga horária excessiva, acúmulo de funções, algumas não remuneradas, falta de visibilidade e valorização, condições de trabalho ruins e múltiplos empregos, são comuns na profissão. Por outro lado, como reconhece a OMS, somos a espinha dorsal dos sistemas de saúde. Fica cada vez mais evidente para mim que esse desvalor está associado à nossa identidade, essa é uma questão de raça, classe e gênero.
“Percebi que seguia recebendo uma demanda de trabalho maior do que meus pares, sem receber uma remuneração compatível à carga de trabalho; que meus feitos seguiam invisibilizados; que eu ainda era vista em um lugar de servidão.“
A formação acadêmica e as conquistas:
Tive uma formação crítica na UERJ e isso contribuiu para que desde o início de minha trajetória profissional eu construísse estratégias que desafiassem esse lugar que nos foi historicamente determinado. Assim, após a graduação, me especializei Enfermagem Obstétrica, na sequência fiz o Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Epidemiologia em Saúde Pública, pela Fundação Oswaldo Cruz, com estágio sanduíche no King’s College London e na Universidade Nova de Lisboa. Participei do programa de Pós-Graduandos da Organização das Nações Unidas, em Genebra, sobre equidade de gênero e empoderamento feminino. Minha tese recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes de Teses e serviu de base para a criação do Projeto Parto Adequado que já evitou a realização de mais de 20 mil cesarianas sem indicação clínica em hospitais privados. Sou Especialista em Melhoria da Qualidade pelo Institute For Healthcare Improvement – IHI e servidora Pública Federal da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Optei por tirar licença sem vencimentos para experimentar novos desafios profissionais.
Atualmente atuo como Faculty do IHI, na função de Diretora Técnica do Projeto Alcançar que tem o objetivo de reduzir a mortalidade materna e neonatal em Moçambique, trabalho que, para além da realização profissional, me possibilita estar em África, nutrindo minha identidade como mulher negra. No início desse ano fui eleita Top Voice Saúde 2020, no LinkedIn.
De 2018 para cá, olhando para meus 20 anos de carreira e tudo que construí, tenho me perguntado: “que aspectos da minha história são cruciais para explicar a forma como construí meu lugar no mundo? Como consegui desafiar opressões estruturais e lugares de servidão, espaços que a sociedade reservou para uma mulher como eu: negra, enfermeira, nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro, e que me possibilitaram alçar voos pouco comuns aos pares que compartilharam a infância comigo? O que ajuda a entender o lugar que alcancei na minha trajetória acadêmica, a construção de uma família preta baseada em relações de afeto, a vida economicamente confortável que tenho hoje? Que saberes de resistência desenvolvi nessa trajetória? Que marcas essas estratégias deixaram em meus corpos físico, espiritual e emocional? Que novas possibilidades surgem a partir disso? Como caminhar a partir daqui?” As respostas que tenho obtido me impulsionam a compartilhar esse conhecimento, em construção, com outras mulheres semelhantes a mim e a tecer juntas experiências, saberes e práticas para uma vida mais intencional.
A desvalorização e a luta racial
No início do ano passado, comecei a articular formas de fazer essa partilha. Busquei uma formação como coach como forma de aprofundar meus próprios processos de autoconhecimento. Percebi tantas dores ainda latentes, formas como a opressão se fazia presente em minha vida, pouco importando a trajetória profissional de sucesso que construí. Percebi que seguia recebendo uma demanda de trabalho maior do que meus pares, sem receber uma remuneração compatível à carga de trabalho; que meus feitos seguiam invisibilizados; que eu ainda era vista em um lugar de servidão. Percebi o quanto vivia num modo de esgotamento físico e mental, que me impossibilitavam de aproveitar os prazeres decorrentes de minhas conquistas. Conversando com colegas, percebia que essa era uma questão muito comum a outras enfermeiras. Com essas reflexões e a formação como coach alinhada aos saberes construídos a partir de minhas experiências, me vi impulsionada a compartilhar esses saberes, por meio de conteúdos em meus perfis nas redes sociais e através de atendimentos individuais. Logo percebi que o chamado era para estar em grupo. Partilhar tudo isso que emergia com outras mulheres que assim como eu tinham trajetórias marcadas por opressões estruturais e desejavam criar outras formas de experenciar a vida, que nos tirassem desse lugar de “mulas do mundo”. Assim, nasceu a mentoria Enfermeiras que Mudam o Mundo. O primeiro grupo foi formado somente com mulheres negras, profissionais de muito destaque na enfermagem, mas que seguiam enfrentando solidão, isolamento e outros sintomas de relações raciais pautadas no racismo. A mentoria, inicialmente pensada para discutir questões da enfermagem, se tornou um local de partilha, aprofundamento e reflexão sobre como as questões raciais se expressam em nossas vidas, possibilitando o desenvolvimento de estratégias de resistência e pertencimento.
Isso deixou mais nítido que meu inimigo comum é a exploração de mulheres negras, sejam elas enfermeiras ou não.
As profissões da saúde, com menor expressão na medicina, são profissões majoritariamente compostas por mulheres e sofrem opressões similares às vivenciadas por enfermeiras. Na medicina, conversando com um contingente crescente de médicas negras, observo a vivência de opressões muito semelhantes às que experimento no lugar de poder que ocupo hoje profissionalmente. Percebo que, mesmo guardando diferenças e, por vezes, conflitos, a articulação de nossas expressões individuais, em nossas multiplicidades, nos ajudam a articular de forma potente como caminhar nesse mundo. Todo esse processo me fez perceber e, mais ainda, desejar, ampliar meu diálogo para além da enfermagem, focando em construir saberes que desarticulem o lugar de servidão que ainda insistem em nos colocar a despeito de todos os avanços que vimos fazendo individualmente até aqui. E assim a mentoria Enfermeiras que Mudam o Mundo está em transição, ampliando esse espaço para outras profissionais de saúde negras
Conclusão
Às vezes penso em desistir! Sinto preguiça, sinto cansaço, sinto culpa: será que estou negligenciando meu filho de 3 anos em função dos meus objetivos profissionais? Tenho dúvidas sobre o caminho a seguir, essas coisas, mas aí olho para minha história, vejo o quanto já caminhei até aqui, penso na minha responsabilidade como liderança na minha área e em tudo que tive a oportunidade de aprender ao logo da vida, percebo o quanto seria egoísta guardar isso só para mim, o quanto ainda posso ajudar às pessoas! Observo como me energiza ver outra mulher negra rompendo com sistemas de opressão como fiz e venho fazendo, o quanto é importante para nós e para as futuras gerações terem exemplos positivos, o quanto posso inspirar outras meninas, outras jovens negras, enfermeiras, profissionais de saúde, o quanto isso é importante para meu próprio filho e sigo! Vamos juntas!