Texto: Claudia Di Moura
A passagem do tempo, por mais que seja um aspecto cientificamente mensurável, tem efeitos bastante distintos na vida do homem e na da mulher. E nada disso está necessariamente ligado às nossas biologias.
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Existem alguns ditados na moda masculina que reforçam a ideia de uma austeridade quase intrínseca à sua natureza. Um deles diz que o relógio é a joia do homem. Mas, numa análise mais polissêmica, tem algo mais por aí. O próprio tempo, do qual o relógio é avatar, parece estar agarrado ao pulso do homem, não como um adereço, e sim, como sua principal ferramenta de manutenção de hegemonia. Porque para homens e mulheres, o tempo passa diferente – não pelo que dizem os relógios, mas pelo que nos contam sobre os prazos de vida socialmente estabelecidos para os gêneros.
Historicamente, o homem detém a manivela do tempo na mão. A ele cabe decidir o que é velho e o que é novo, qual a maioridade penal, quantas semanas de gestação até um aborto ser considerado homicídio, quanto vale o tempo dedicado pela mulher ao lar e aos filhos, qual o preço de uma hora trabalhada no chão da fábrica e se uma menina de menos de quatorze anos está pronta para lhe servir sexualmente. O homem é senhor do tempo, e a mulher é vulnerável a ele, pois já nasce com prazo de validade, enquanto o homem “envelhece igual a vinho”. Por exemplo, uma gestação que acontece depois dos trinta e cinco anos de idade é chamada “gravidez idosa”. Ou tardia, que seja. O ponto é que, para o homem, nada nunca é tardio.
Com o decorrer do tempo, o homem tem enaltecido seu autoproclamado amadurecimento. Posa de sábio, distribui conselhos, ganha autoridade em seus cabelos brancos e uma virilidade celebrada. Já a mulher é ridicularizada, crê-se indesejável ou é fetichizada, tem suas emoções negligenciadas e diminuídas por um sistema que a invisibiliza. Se antes ela era criminalizada pelas mudanças de humor provocadas pelos ciclos hormonais, agora ela é lida como louca e amargurada por culpa da menopausa. E, ao contrário do que acontece com o gênero oposto, na tela do rosto feminino não cabem rugas ou sinais da passagem do tempo. Daí ela é obrigada a se submeter a procedimentos estéticos que reprimem a expressão facial das suas emoções básicas.
Isso porque, na revista da sociedade, o homem é o texto, e a mulher é a ilustração, muito bem impressa, revisada no Photoshop. A juventude eternamente registrada no retrato, enquanto, na vida real, o relógio dela gira mais rápido que a hélice de um liquidificador, moendo e destruindo sua dignidade. Medir a validade do corpo feminino a partir da funcionalidade do seu útero é mais um sinal de que, no dress code dos gêneros, a mulher é a bolsa do homem. Enquanto ele porta consigo as chaves, a carteira e o celular, ela precisa carregar a casa, a rotina das crianças, a integridade dos seus óvulos e o kit de maquiagem, indispensável para que seja socialmente apresentável.
Precisamos nos atentar para essas assimetrias e entender que o tempo é um construto ideológico fabricado, como todos os outros, pelas mãos hegemônicas do homem branco, heterossexual, cisgênero e capitalista. Lembrar que, para além de uma dimensão natural, o tempo é entortado em favor dessa classe, é fundamental e libertador, para que não caiamos em suas armadilhas e não nos permitamos a tatuagem, na testa, de um prazo de validade determinado por alguém que não nos criou.
*Claudia Di Moura é uma atriz afro-indigêna e ativista. Como atriz, busca levar para o mercado audiovisual e para o teatro as múltiplas lutas pelos direitos das mulheres, do povo negro e dos povos originários
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