Em 2021 o Festival Latinidades completou 14 anos de existência e já se consolidou como o maior festival de mulheres negras da América Latina e um marco na agenda de mulheres pretas de diversas idades, esferas de atuação na região. Para saber um pouco mais da história do Festival, o MUNDO NEGRO conversou com Jaqueline Fernandes, que idealizou e coordena o Festival até hoje.
Tendo acontecido em diferentes formatos, tamanhos e até mudado de cidade, o Festival Latinidades nasceu na capital do país, com o propósito de popularizar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha no Brasil. “É muito gratificante olhar para o que era o 25 de julho em 2008 e olhar para agora, que não é um dia, é um mês inteiro. O Julho das Pretas é um potencial como o 20 de novembro, e assim como o 20 de novembro, é um marco construído ano após ano”, diz Jaqueline.
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A edição deste ano homenageou a multiartista Zezé Motta, a vice-presidenta da Costa Rica, Epsy Campbell, a cantora Rosa Passos e a cantora peruana e vencedora do Grammy Latino, Susana Baca. A escolha se deu pela conexão entre cultura e política, imprescindível, na avaliação de Jaqueline. “O principal link entre todas elas é a relação das quatro com a incidência política e a cultura, que são coisas que não estão, de forma nenhuma, dissociadas”, defende.
Para ela, a incidência política das mulheres negras, desde a criação do 25 de julho em 1992 e chegando até os dias atuais, tem transformado a sociedade como um todo. “Eu acredito que, de fato, o movimento de mulheres negras é uma das organizações sociais, políticas, mais potentes que existe”, crava.
Confira a íntegra da entrevista:
Como você se sente, enquanto idealizadora e realizadora do Festival Afrolatinas após 14 anos?
Eu sinto que o projeto partiu de um lugar de inquietação pessoal como mulher negra, periférica e artista, e se conectou com outras histórias, com outras realidades e pessoalmente, me colocou dentro de uma coletividade. Ao longo desses anos, eu e o projeto fomos impactados por essa coletividade e também impactamos essa coletividade. Então, eu me sinto honrada por fazer parte de algo que é tão grande, feito a tantas mãos e que chegou no lugar onde chegou, de ser o maior festival de mulheres negras da América Latina.
Quando eu volto para o início da criação do Festival, eu tanto comemoro essa caminhada que me impacta pessoal e coletivamente, quanto eu olho para o movimento de mulheres negras e vejo que, a cada dia mais, esse movimento é potente e tem sido determinante para os rumos da sociedade.
Eu gosto sempre de citar a Vilma Reis quando ela fala que o movimento de mulheres negras tem empurrado a esquerda mais para a esquerda. Eu acredito que a potência e a diversidade do movimento de mulheres negras, antes mesmo do Latinidades existir, mas tendo isso como marco nos últimos 14 anos, transformou totalmente a vida das mulheres negras e a sociedade como um todo. Eu acredito que, de fato, o movimento de mulheres negras é uma das organizações sociais, políticas, mais potentes que existe.
Este ano, o Festival trouxe quatro homenageadas em diferentes âmbitos da sociedade, como se deu essa escolha?
Esse ano de 2021 a gente está fazendo homenagem a quatro mulheres e o principal link entre todas elas é a relação das quatro com a incidência política e a cultura, que são coisas que não estão, de forma nenhuma, dissociadas, e que muitas vezes parece que estão. O Latinidades e eu, como coordenadora-geral, estou sempre batendo nessa tecla de que nós partimos do lugar das artes e da cultura e que esse lugar é um lugar potente, frutífero, para incidência política, para além da mobilização, para além da inspiração, para além do campo subjetivo e da disputa de imaginário.
A gente tem no campo das artes e da cultura um campo estratégico e efetivo de fazeres e de transformações e de mudança, e essas mulheres todas têm uma ligação com isso. A Susana Baca por exemplo, é uma super artista afroperuana e que teve a trajetória relacionada à política afirmativa na cultura, e foi inclusive ministra da cultura. A Zezé Motta é uma multiartista que tem um brilhantismo em várias linguagens artísticas e que, ao mesmo tempo, empreendeu uma luta e toda uma trajetória no campo da incidência política fazendo arte e cultura.
E aí a gente tem Rosa Passos, uma figura incrível, uma das vozes mais poderosas do mundo, que vive em Brasília, e que sempre teve muito envolvida com política cultural. E a Epsy Campbell, realmente como vice-presidenta da Costa Rica como um símbolo de ocupação de espaço político, como uma inspiração e, principalmente, pensando que ela foi uma das mulheres que estiveram no primeiro encontro, e esteve na criação da rede de mulheres negras latino-americanas e caribenhas. Faz todo sentido, depois de 14 anos, a gente voltar, olhar para esse encontro, olhar para uma das pessoas que esteve na base dessa construção e que hoje é vice-presidenta da Costa Rica.
Você acha que o Dia da Mulher Negra Afrolatino-americana e caribenha já é algo que está incorporado no Brasil?
A gente teve uma evolução tremenda em relação a isso. Quando o Latinidades surge, em 2008, a gente toma como missão, entre outros objetivos, popularizar o 25 de julho no Brasil. Quando a gente olha para 14 anos atrás, eram pequenas as iniciativas nesse sentido. O Latinidades vem e consegue acolher várias redes e amplificar essa data, ano após ano, e aí é muito gratificante olhar para o que era o 25 de julho em 2008 e olhar para agora, que não é um dia, é um mês inteiro.
O Julho das Pretas é um potencial como o 20 de novembro, e, assim como o Dia da Consciência Negra, é um marco construído ano após ano. A gente tem o Dia da Mulher Negra como lei, então ele está no calendário oficial, e acredito que ainda tem um caminho longo para fazer isso se espraiar e ser realmente uma data lembrada, comemorada e reafirmada na base.
Mas, acho que a gente está muito próximo disso, e já era de se esperar que o movimento de mulheres negras na América Latina realmente conseguisse pegar essa data e transformar, de fato, num marco enorme e visível para a sociedade, porque é um momento em que a gente celebra os nossos fazeres, nossa existência, nossa contribuição para a sociedade, reivindica visibilidade, políticas públicas e discute a situação da mulher negra na América Latina.
A atuação das mulheres negras acontece de maneira diversa ao longo do ano, mas no 25 de julho a gente percebe que, cada vez mais, essa data se amplia, cria pontes, diálogos e tem mais visibilidade, inclusive nos meios de comunicação. Não foi do dia para a noite, a gente está falando de 14 anos de Brasil, tendo o Latinidades como marco, e de 30 anos que a gente vai fazer em 2022, desde a criação do 25 de julho. Esse estágio que a gente chegou tem a ver com 30 anos de luta e de construção.
Ao longo dos anos o Latinidades se transformou bastante. Ano retrasado vocês fizeram uma edição fora de Brasília, ano passado veio a pandemia, como você enxerga o futuro do Festival?
Ao longo de todo o processo, eu não vejo que o Latinidades tenha se transformado nos últimos anos, eu acho que ele se transformou desde o primeiro minuto, quando primeiro ele era um projeto local, que tinha motivações muito ligadas à história e à dinâmica do Distrito Federal periférico e preto. Depois, ele vira nacional, se conecta com outras redes, com outros propósitos, pega essa bandeira de popularizar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e caribenha, partindo das artes e da cultura começa a ser um espaço procurado por outros tipos de articulação, pela academia, por outros tipos de movimentos sociais e de pautas que a gente não imaginou no primeiro momento.
Então, sempre teve mudanças, um lugar de flexibilidade, um lugar líquido, de mar, de rio, de firmeza e de fluidez e que acolheu e foi acolhido e que esteve e está em constante transformação. Isso se deu por coisas boas que chegaram pra gente e por desafios impostos pela falta de políticas públicas, pelo racismo, pelo machismo, pela falta de investimento no projeto, por exemplo, como aconteceu quando a gente teve que ir para São Paulo, sem investimento nenhum do Distrito Federal, sem reconhecimento daquilo que a gente vinha fazendo.
Foi um desafio que tinha tudo para ser problemático, a gente em outra cidade, em outro contexto, longe dos nossos fornecedores, da nossa rede de trabalho, mas ao mesmo tempo, serviu pra gente perceber que o Latinidades não era só de Brasília, era do Brasil. Então a gente percebe, em São Paulo, que o Latinidades tem asas e pode acontecer onde for. Nessa perspectiva de acontecer onde for, vem a pandemia, coloca a gente numa situação de fazer ou não fazer.
Foi um momento muito delicado, de muita tensão, porque um dos valores agregados do Festival Latinidades é que ele é um espaço de encontro, com mulheres de todo o país, se reunindo na Esplanada dos Ministérios, que é um símbolo administrativo de poder, e ao mesmo tempo, um lugar onde as pessoas negras são subrepresentadas ou vistas em lugar de subalternidade, e a gente tá ali, em massa, às vezes colocando 30, 40, 50 mil pessoas.
A gente se questionava, se era uma coisa que a gente ia fazer – estar nesse ambiente virtual -, mas rapidamente a gente entendeu que era para estar, sim, que a gente não ia deixar de fazer uma edição, e que era mais importante discutir os temas que a gente discutiu: utopias negras no ano passado, e ascensão negra neste ano. Eu acho que o projeto, de fato, é uma constante dialética, uma constante transformação.
Que retornos você recebe sobre o Festival?
Já recebi feedbacks como uma vez que eu estive em Salvador para entrar numa festa, perdi o convite e quando fui comprar de novo, a pessoa da bilheteria, que eu nunca tinha visto na vida, disse: Você não é do Latinidades? O Latinidades mudou a minha vida, você não vai pagar para entrar aqui.
Recebo também feedbacks sobre marcas que expuseram no festival e depois cresceram, pessoas que participaram em determinado ano das atividades formativas e tiveram a carreira impulsionada, ou pessoas que trabalharam como voluntárias no programa Serviço de Preto e que depois montou a própria empresa e já está no mercado trabalhando na área da cultura.
Recebo relatos de pessoas que receberam notícia de gravidez, gente que foi pedida em casamento, durante o Festival. São muitas memórias e muitas histórias. Nesse momento, a gente está mirando a edição de 2022 muito baseada nisso, em quantas histórias, memórias e coisas aconteceram durante essas edições do Festival e marcaram as pessoas.
Muitas pessoas levaram os temas do Latinidades ou o próprio Festival para defender na academia, seja como monografia, como publicação de artigos. Às vezes não consigo acreditar que aconteceu tudo isso mesmo, que foi articulado a partir da utopia e do sonho de uma mulher preta periférica e que encontrou com outras pessoas que colocaram seu sonho, sua vida.
Foram muitas mãos, mentes e redes envolvidas. Acho que esses feedbacks vão estar muito presentes no que vai ser a próxima edição do Latinidades e próxima fase do Festival. O mais importante são as histórias das pessoas e é esse movimento que é o futuro, que é o passado, que originou a criação.