Mundo Negro

“Meu papel é mostrar que é possível ampliar a nossa presença”, diz dramaturgo Elísio Lopes Jr.

Foto: Amanda Jordão

O diretor e roteirista baiano Elísio Lopes Jr., conhecido por suas contribuições em obras que exploram a identidade brasileira e a ancestralidade negra, vive um momento de reconhecimento profissional. Com a recente estreia de “Torto Arado – o musical”, adaptação do premiado livro de Itamar Vieira Junior, Elísio continua a impactar o cenário cultural ao conduzir a celebração dos 50 anos do bloco afro Ilê Aiyê. Paralelamente, ele trabalha na sinopse de uma nova novela das 18h para a TV Globo, em parceria com os autores Duca Rachid e Júlio Fisher, após o sucesso das 18h, “Amor Perfeito”.

Em “Torto Arado – o musical”, Elísio traz à cena a história de Bibiana e Belonísia, duas irmãs marcadas por um acidente na infância e que enfrentam condições de trabalho análogas à escravidão no sertão baiano. A peça, que estreou em Salvador e teve sessões esgotadas, chega a São Paulo em 20 de novembro. Além do musical, Elísio também comandou o espetáculo comemorativo dos 50 anos do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil, que aconteceu no dia 1º de novembro na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. “O Ilê me ensinou a me enxergar no mundo, a ver a força da representatividade. A beleza negra é essencial para a saúde mental da população preta brasileira”, afirmou.

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Em entrevista ao Mundo Negro, Elísio destacou a importância de seu trabalho e os desafios enfrentados ao longo de sua carreira. “Eu tomei para mim a missão de avançar, abrir espaços que pareciam que não eram para pessoas como eu. Se o projeto é contar histórias, e entre elas, puder contar a história de quem se parece comigo, é preciso estar preparado para não achar os caminhos abertos”, afirmou. Ele reconheceu que, embora a consciência sobre a representatividade esteja crescendo, ainda há uma longa jornada pela frente. “Estamos no início desse novo processo. Não basta ter atores negros, o conteúdo precisa ser pensado por pessoas que conhecem a realidade de viver no Brasil”, acrescentou.

Confira a entrevista completa:

Mundo Negro – Você está vivendo uma fase de grande reconhecimento, com o sucesso de “Torto Arado – o musical”, o espetáculo dos 50 anos do Bloco Afro Ilê Aiyê e a série “Reencarne” que chega ao Globoplay em 2025. Como você enxerga essa fase e o que ela representa em sua trajetória?                                                                           

Elísio Lopes Jr.: Eu tomei para mim a missão de avançar, abrir espaços que pareciam que não eram para pessoas como eu. Preto e nordestino, na fotografia que está na cabeça desse país, não tem uma caneta na mão. Tem a pá, tem a enxada, a vassoura, mas a caneta, no imaginário desse país, tem outro dono. Eu me lembro do primeiro festival de teatro que fui com um espetáculo escrito por mim. Foi nos anos 90, em Florianópolis. Eu fui barrado de subir ao palco para participar do debate do meu próprio texto, porque eu não tinha “cara de autor”. Mais de 20 anos depois vivi a mesma coisa já trabalhando na TV. Meus colegas não sabem o que isso significa. É preciso ter serenidade e seriedade nesse caminhar, ou é mais fácil desistir. Mas  se o projeto é contar histórias, e entre elas, puder contar a história de quem se parece comigo, é preciso estar preparado para não achar os caminhos abertos. Comecei nos palcos, depois nos livros e na TV e por último no cinema. Todas essas linguagens são plataformas para que sejam contadas histórias que nos façam avançar. Quem ganha com chicotadas? Quem ganha com tiros que derrubam crianças pretas em close? Quem ganha com o reforço de estereótipos que nos vitimizam há décadas? Precisamos alimentar um novo imaginário, e eu estudei para isso, eu trabalho há mais de três décadas para isso, para contar histórias que tragam autoestima, orgulho e novas possibilidades para mim e para os meus. 

MN – Seu trabalho tem impacto muito além do palco ou da tela. Como você vê a importância de ter profissionais negros não apenas atuando, mas também liderando e criando histórias nos bastidores da teledramaturgia?

Elísio Lopes Jr.: A consciência da nossa existência e relevância já existe. O problema é que da consciência até o ato de abrir mão dos privilégios existe uma distância enorme. Tenho recebido muitos convites para ser “consultor” ou para ser “parceiro” de autores que desejam contar histórias pretas, mas que não se sentem mais confortáveis de fazê-lo sem um autor preto por perto. Por um lado eu acho isso bom, é a consciência que começa a existir do quão absurdo é estarmos fora desses espaços. Mas de outro lado vem a pergunta: Você que é aliado, não acha que seria melhor passar essa caneta para mim? Aí vem a reserva de espaços, aí vem o “medo” de apostar no novo. Por isso seguimos repetindo fórmulas em nome de uma “segurança” que já faliu. E se não forem revistas essas apostas, afundaremos todos na falta de relevância. As pessoas não sabem o que desejam assistir, o papel do artista é surpreender. Mas todo mundo sabe o que não deseja mais assistir. Essa inteligência ninguém tira do povo. Muitas escolhas são erradas, mas o não é não. Não dá mais para enfiar na nossa garganta o sofrimento dos milionários da Vieira Souto, ou a briga infinita pela herança de papai. Não cola mais!  

MN – “Reencarne” promete trazer um protagonismo preto para o Globoplay em 2025. O que o público pode esperar dessa série? Como essa produção contribui para uma nova narrativa dentro da teledramaturgia nacional?

Elísio Lopes Jr.: “Reencarne” é uma série de gênero. Chamamos de Terror Sertanejo. É um projeto escrito por três autores pretos e duas autoras brancas: eu, Igor Verde, Juan Julian, com Amanda Jordão e Flavia Lacerda. É sobre a liberdade de criar e contar histórias que não sejam apenas sobre o nosso umbigo. Tem uma coisa de ficção espiritual que é maravilhoso poder exercitar, nos ver em papéis diferentes, debatendo a matéria, a existência para além da vida. “Reencarne” entra nessa caminhada como parte do exercício de poder contar histórias realmente diversas. Sem deixar de ser honesto, brasileiro e consciente do que precisamos debater.

MN – Como pai de três filhas e profissional que busca deixar um legado positivo, o que você gostaria de ver mudando no cenário cultural e artístico para as próximas gerações?

Elísio Lopes Jr.: Eu estava conversando essa semana com a diretoria do Bloco Ilê Aiyê, aqueles que há 50 anos criaram o primeiro bloco só de pretos no carnaval de Salvador. Eles saíram às ruas em 1975, pós-ditadura, vigiados, discriminados, mas saíram. A imprensa da época disse que o Ilê era um “bloco racista”. E durante o primeiro desfile, diante do olhar da elite branca baiana, totalmente espantada, eles cantaram: “Branco, se você soubesse o poder que o preto tem.” Nessa conversa com os mais velhos do Ilê, Vovô do Ilê me disse uma coisa muito bonita: “Elisio, nós tivemos coragem de fazer! Agora é com vocês.”  Eu sinto essa mão, esse bastão de responsabilidade. Meu papel é mostrar que é possível ampliar a nossa presença, é caminhar em direção a uma sala onde sejamos muitos na mesa e as escolhas passem por nós. Se no final, eu olhar para o lado e enxergar outros como eu sentados à mesa de decisão, eu terei feito a minha parte.

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