Mundo Negro

Marcas milionárias estão explorando criadores de conteúdo em troca de produtos e pagamentos insignificantes

Maju Santos, uma jovem creator alagoana de 19 anos, tem um número expressivo no TikTok, onde seus vídeos somam mais de 2 milhões de visualizações. O foco dos seus vídeos são seus belos e longos cachos. A beleza do seu cabelo é frequentemente associada por ela mesma ao uso dos produtos da linha Tô de Cachos, da Salon Line. Além de não receber nenhum real por esse trabalho, Maju ainda foi humilhada pela marca com uma DM com palavras grosseiras.

Em seu fraco pedido de desculpas, a milionária marca usou a visibilidade do caso para divulgar o projeto Migs, que seleciona perfis de jovens criadores com base no que considera ser potencial de influência. Esses jovens acessam uma plataforma fechada, assistem a vídeos e, ocasionalmente, recebem kits de produtos — a critério exclusivo da marca. Em troca, cedem sua imagem, voz e conteúdos produzidos sem remuneração, mesmo que os materiais sejam usados em campanhas publicitárias em larga escala.

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Esse tipo de atividade é nomeado pelo mercado como UGC Creator. A sigla UGC vem do inglês User-Generated Content, que significa “conteúdo gerado pelo usuário”.

“Originalmente, o termo UGC surgiu para descrever conteúdos espontâneos, criados por consumidores reais que compartilhavam suas experiências genuínas e impressões sobre produtos de uma marca. Eram depoimentos autênticos, nascidos da satisfação ou insatisfação com a compra”, explica Gleidstone Silva, estrategista de conteúdo, creator e fundador do Nossa Pele Negra.

Ele aponta várias problemáticas nessa prática, que muitos ainda acreditam ser vantajosa para as marcas. “É preciso alertar para um cenário preocupante que se instalou no mercado brasileiro. O modelo de UGC Creator que muitas marcas têm adotado, aliado ao surgimento de diversas plataformas de ‘brand lovers’, está comprometendo severamente a cadeia da creator economy. Ao oferecer apenas produtos em troca de conteúdo, essas iniciativas precarizam o trabalho dos influenciadores que dependem da criação de conteúdo para sua subsistência”, diz o publicitário, que complementa: “É fundamental que as marcas compreendam que investir em parcerias remuneradas com criadores autênticos não é um custo, mas sim um investimento estratégico que gera valor para ambos os lados e para o consumidor final”.

Aldine Paiva, Especialista em Influência & Mentor de Criadores de Conteúdo, traz constatações com alguns números que comprovam o fator exploratório das marcas, que acreditam que não devem investir em creators com poucos seguidores. “E esse tipo de engajamento (gerado por UGC) é o engajamento que é mais precioso. Porque a gente está falando de nano e micro influenciadores, que são os influenciadores que têm as maiores taxas de engajamento. Quanto menor a sua base, maior a sua taxa de engajamento. Um nano e um micro influenciador às vezes consegue ter 14%, 15%. Eu já rodei campanha com influenciadora que entregou no relatório final 14% de taxa de engajamento. Isso é altíssimo. Um engajamento de 2% já é um engajamento alto. Uma celebridade aí que tenha seus 3 milhões a 5 milhões às vezes tem 0,10, 0,20, 0,3% de engajamento. Então, para a marca fazer o uso de pessoas que têm um engajamento tão alto e uma relação tão próxima com a comunidade é algo que só favorece a elas — principalmente porque elas estão dando um shampoo em troca desse trabalho”.

Para Luciellen Assis, designer de moda e criadora de conteúdo desde 2013, marcas não devem ser vistas com valor afetivo. “Eu acredito que quem está entrando no mercado de influenciadores precisa entender que marca não tem coração. É só um CNPJ que precisa de lucro e ganha muito com publicidade gratuita. Quanto mais você trabalha de graça, menos eles querem pagar. É massa ter algum relacionamento e criar conteúdo orgânico se você gosta do produto sim (até porque, inclusive na publicidade paga, é importante gostar de verdade do que é divulgado), mas tudo tem que ser feito com cautela. Entenda que sua imagem é cara e eles precisam pagar por ela”.

Dá para produzir conteúdos de beleza sem ser explorado pelas marcas

Criar conteúdo pela internet é um trabalho que precisa ser reconhecido como qualquer outro. Comprar os produtos, usar, resenhar, gravar, editar, postar esse conteúdo — tudo isso demanda tempo e também dinheiro. Mesmo que o produto seja um recebido, o creator ainda investiu tempo para entregar algo com qualidade, além de engajar com seus seguidores sobre o produto.

Esse engajamento é fundamental para se destacar na internet, e gerar renda com esse trabalho tem sido o sonho de cada vez mais jovens. “Criação de conteúdo hoje no Brasil está num lugar que é ser o novo jogador de futebol, é ser a nova modelo, é um lugar onde você consegue ter mobilidade social, você consegue ajudar você, você consegue ajudar sua família, comprar sua casa própria — e aqui estou falando de nano e micro influenciadores, que são esses que são os mais impactados por UGC”, ilustra Aldine.

Uma dica é falar sobre temas e encaixar vários produtos, ao invés de se fixar em um só.

“Para os jovens criadores de conteúdo que almejam construir parcerias sólidas e duradouras com marcas de beleza, o caminho mais promissor reside na autenticidade e na genuinidade. Em vez de replicar formatos publicitários tradicionais disfarçados de UGC, o ideal é focar em compartilhar suas reais percepções sobre os produtos. Como aquele item específico se encaixa na sua rotina de cuidados com a pele ou cabelo? Quais foram os resultados práticos que você observou? Como tem sido a experiência de uso no seu dia a dia? Ao construir narrativas honestas e transparentes, esses jovens criadores se conectam de forma muito mais profunda com sua audiência, estabelecendo uma relação de confiança que é altamente valorizada pelas marcas”, ensina Gleidstone, que diz que as empresas possuem agências e profissionais dedicados à busca de criadores autênticos, que conseguem conversar de maneira verdadeira com seus seguidores e gerar um impacto real.

“O único jeito dessa pessoa que quer entrar no mercado e produzir conteúdo de beleza é produzir um conteúdo que tenha várias marcas. Eu sempre falo isso para as pessoas e para os criadores que eu agencio ou que eu tenho a chance de orientar por qualquer via que seja. Você está produzindo conteúdo sobre skin care, não usa uma marca só: usa a base de uma marca, o pincel de outra, o corretivo de outra, o finalizador de outra, a água termal de outra — e no final você tem um tutorial onde de fato está ensinando para sua base uma técnica que você realmente acredita e que você realmente usa, sem ficar refém de uma marca, sem aquilo virar uma publi gratuita”, finaliza Paiva.

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