A filha de uma escrava doméstica que se transformou no “terror das patroas”, desafiando políticos e infernizando a elite de uma cidade na década de 1960. Um jovem músico que, em plena ditadura militar, integrou um grupo de operários artistas que viajou pelos Brasil questionando o mito da democracia racial e influenciou diretamente a criação do Movimento Negro.
Laudelina de Campos Melo e Antonio Carlos Santos Silva, o TC, são heróis negros brasileiros que você provavelmente nunca ouviu falar.
Notícias Relacionadas
Resgatar esses nomes e honrar suas biografias por meio do jornalismo literário são algumas das “missões” do jornalista e fotógrafo Roniel Felipe, autor do livro “Negros Heróis: histórias que não estão no gibi”.
A obra é uma produção independente de 196 páginas, dividas em duas partes, que, juntas, retratam mais de um século de história do Brasil e do mundo, na qual nomes como Juscelino Kubitschek, Hilda Hist, Abdias Nascimento, Dom Hélder Câmara, Adolph Hitler e os Panteras Negras contextualizam os fatos.
A reedição da obra independente pode ser adquirida por meio do site de financiamento coletivo Catarse, em campanha que vai até o dia 15 de janeiro de 2016.
Roniel bateu um papo com o site Mundo Negro para falar sobre o livro, representatividade, apropriação cultural, racismo e literatura.
Qual foi a primeira personalidade negra que despertou seu interesse?
Não me lembro exatamente qual foi a primeiro personagem negro que chamou a minha atenção, mas recordo que, desde pequeno, eu sentia falta de negros com maior destaque nos quadrinhos e na TV. Na escola, a realidade não era diferente, já que pouco se falava do negro. Com exceção de Zumbi dos Palmares, a ideia passada é de que éramos apenas escravos que fomos libertos pela Princesa Isabel. Para minha sorte, cresci em uma comunidade onde a resistência e a cultura negra sempre foram marcantes. Embora o bairro também fosse marcado pela violência e por traficantes endeusados por muitas pessoas, quem atraiu minha admiração foram os negros que faziam de tudo para o bem da nossa comunidade. Além de mudarem a realidade de uma região que só chamava a atenção da mídia de forma negativa, ambos os personagens brilharam em várias partes do Brasil, enfrentando o racismo, situações adversas e levando alegria a milhares de pessoas. Ao me formar jornalista, tive a chance de retribuir um pouco do tanto que eles fizeram a ainda fazem.
A escravidão é uma agressão social ainda muito recente na nossa história. Você acha que este é um dos fatores pelo qual as personalidades negras ainda não são estudadas ou é o racismo que explica essa invisibilidade?
Acho que ambos os fatores nos atrapalham muito. Se hoje vivemos um momento de mudanças no qual nossas manifestações e inquietações têm ganhado dimensões inéditas, por outro lado, as marcas da ignorância são bastante flagrantes na nossa sociedade. Se nos compararmos aos negros americanos e à sua luta pelos direitos civis, notamos que temos um longo caminho a ser trilhado. No entanto, como disse, embora lenta, há uma transformação ocorrendo. Vale salientar que esta mudança não atinge apenas nós, negros, como também as mulheres em geral e o movimento LGBTS. Em suma, estamos em uma montanha-russa social com seus constantes altos e baixos. Vivemos retrocessos dignos da idade das trevas, mas temos um número cada vez maior de lampejos. Se Dona Laudelina, negra, doméstica e com pouco estudo foi a Brasília em 1966 bater de frente com o Ministro do Trabalho, hoje tivemos milhares de mulheres indo à capital protestar por igualdade. Se na década de 1990, TC e Lumumba estiveram à frente de uma ocupação da Secretaria da Educação porque o governo de São Paulo se apropriou de uma verba destinada a um evento para negros, hoje temos as escolas ocupadas por alunos que exigem melhorias na educação. Hoje o nosso grito ecoa mais alto, sem dúvida.
E qual sua avaliação sobre a literatura negra atual? Como você avalia esse mercado e o reconhecimento dos autores negros?
Creio que a literatura negra também está passando por esse moroso processo evolutivo. Outro problema que acomete a nossa literatura, no geral, é que o brasileiro lê muito pouco. Para piorar, o mercado também não é favorável ao escritor nacional. Basta olharmos a lista dos livros mais vendidos no Brasil e veremos que, dentre os top 10, estarão livros internacionais e obras de celebridades da internet. Obviamente, não há produções voltadas à história do negro. Sendo assim, acredito que a ideia de trabalhar com elementos que remetam à nossa realidade conte positivamente para conquistar novos leitores e, consequentemente, fomentar a literatura negra. Como não poderia deixar de ser, a crise também atinge o mercado editorial. Porém, ainda há alternativas, tais como as editoras especializadas, as produções em pequena tiragem e as campanhas de financiamento coletivo. Desde que iniciei a carreira literária, sempre optei por essa literatura marginal, de fazer as coisas do meu jeito. Essa é uma escolha que também passa por nossa realidade, pois ainda vivenciamos o mito da democracia racial, e creio que nem todas as editoras de grande porte estão dispostas a tocar nesse assunto. É aí que surge a importância de tomarmos as rédeas da nossa produção.
Apropriação cultural é um fator que incomoda quando muitos brancos enriquecem comercializando cultura negra?
Embora exista uma tendência positiva à segregação, vivemos em um mundo cada vez mais conectado pela internet. O capitalismo também influência diretamente na noção de que “tudo podemos”. Com dinheiro, um negro como eu pode pegar um avião, ir até o Japão, pesquisar e escrever sobre samurais. É uma realidade, doa a quem doer. Como jornalista e fotógrafo, eu seria no mínimo demagogo em dizer que um não negro não possa escrever uma obra competente sobre negros. No entanto, há um elemento-chave nesta questão. O que deve ser levado em consideração, neste caso, são os porquês que levam os autores a tais escolhas e, principalmente, como suas vivências e ideologias são demonstradas. Tomo como exemplo Monteiro Lobato, um caso clássico de escritor que, de acordo com o tempo em que viveu e com suas convicções, por muitas vezes, mostrava-se extremamente racista quando retratava os negros. É por isso que se faz necessária a existência de um número maior de formadores de opiniões negros. É necessário que eles tenham cada vez mais acesso às ferramentas para a produção cultural. Eu acredito que o empirismo e a nossa vivência dão um tom único de realidade às nossas produções; afinal, já estamos cansados de olhares estereotipados. Eu até poderia falar sobre samurais, mas não o faria com autenticidade e o sentimento de um japonês. Se não contamos nossas próprias histórias, alguém o fará à sua maneira. E se a gente não conhece nosso passado, fica bem mais difícil mudarmos nosso futuro positivamente.
E como funciona o financiamento coletivo para o seu projeto? O que os colaboradores ganham?
O financiamento coletivo se encaixou como uma luva na minha carreira literária. No final do ano passado, consegui o financiamento de “Contos Primários de um Mundo Ordinário”, uma coletânea de contos ilustrada pelo cartunista Junião. Em apenas duas semanas bati a meta. Agora, estou com cerca de 70% da meta atingida. Se a ideia de Negros Heróis não foi aprovada em editais municipais e estaduais, eu não deixaria a peteca cair, pois as histórias inspiradoras de Dona Laudelina e TC não podem ser esquecidas. E, tendo em mente o cenário atual da realidade do negro no país, achei que era a hora de apostar em uma reedição. Para participar é fácil. Basta fazer o cadastro no site do Catarse e escolher uma opção de apoio. O pacote mais básico custa R$ 30,00 e dá direito de o apoiador receber o livro e um marcador de páginas via correio. Há outros pacotes que oferecem ensaios fotográficos, pôsteres, jantar e café da manhã por minha conta. A obra está no processo final de produção e, até fevereiro, os leitores de todo o Brasil passam a receber seus exemplares. Como é uma produção independente e com baixa tiragem, o livro não será vendido em outros lugares. Espero que “Negros Heróis” continue a semear bons frutos por onde a obra passar. Fico feliz pela chance de levar a tantas pessoas as referências que me faltaram durante muito tempo.
Saiba mais sobre o livro “Negros Heróis: histórias que não estão no gibi” e outros trabalhos do jornalista Roniel Felipe pelas redes sociais:
Catarse – Facebook – Instragram