Mundo Negro

‘Ela rompe o apagamento’: Autores explicam literatura marginal após fala preconceituosa na Flipoços

Foto: Reprodução/Instagram

O Festival Literário Internacional de Poços de Caldas (Flipoços) tornou-se palco de um caso que reacendeu a discussão sobre o significado da literatura marginal. Durante uma mesa que dividia com o escritor Wesley Barbosa no dia 29 de maio, a escritora Camila Panizzi Luz fez declarações que associaram o movimento à criminalidade, gerando reações e levando à sua retirada do evento. O caso expôs a necessidade de se compreender essa produção literária que emerge das periferias como forma de resistência e expressão cultural.

A literatura marginal, também chamada de periférica, surgiu na década de 1970 como uma resposta ao apagamento das vozes das comunidades marginalizadas. Diferentemente do que sugeriu Camila em sua fala – “Nunca fui presa, mas agora sou da sociedade” -, tratam-se de obras que retratam as vivências das periferias urbanas, muitas vezes através de publicações independentes e distribuição alternativa em saraus e eventos comunitários. “Para mim, é mais do que um movimento. É uma forma de dizer: “nós também estamos aqui”. Ela nasce das brechas onde ninguém quis olhar, das vielas, dos quilombos urbanos, das aldeias que resistem cercadas por muros e silêncios. É uma escrita feita com a alma exposta, com o corpo presente, com as dores e delícias de quem vive à margem — mas nunca calado. Essa literatura importa porque ela rompe o apagamento”, destaca o escritor e diretor Rodrigo França para o Mundo Negro.

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Rodrigo França – Foto: Reprodução/TV Brasil

O escritor Ale Santos, autor de “Rastros de Resistência”, explicou em entrevista o equívoco da associação com criminalidade: “É, sem dúvida nenhuma, uma extravagante ignorância do significado da palavra marginal que é estar à margem de algo, afastado ou socialmente desprezado. O sentido que ela aplicou é o sentido racial, porque historicamente no nosso país, as populações marginais são negras e foi construído esse olhar enviesado pelo racismo de que essa marginalidade que deveria ser acolhida, é conectada ao crime”.

Ale Santos – Imagem: Divulgação

Obras e autores de literatura marginal

À pedido do Mundo Negro, Rodrigo França e Ale Santos indicaram autores fundamentais para compreender a diversidade da literatura marginal, com ênfase em vozes indígenas, negras e periféricas. França destaca obras como Metade Cara, Metade Máscara (Eliane Potiguara), Poemas da Recordação e Outros Movimentos (Cuti) e Negra Nua Crua (Mel Duarte), Outros Contos Indígenas (Daniel Munduruku), Luanda, Lisboa, Paraíso (Djaimilia Pereira de Almeida), Eu sou Macuxi (Julie Dorrico) e Um Exu em Nova York (Cidinha da Silva), que abordam resistência, identidade e ancestralidade. Já Ale Santos menciona autores que estão despontando no cenário literário, como Thiago PHZ, um dos vencedores do Prêmio Conceição Evaristo de afrofuturismo pela Fundação Palmares, Sandra Menezes, que foi finalista do Prêmio Jabuti e Preto Michel, que trabalha com a literatura periférica nas baixadas de Belém do Pará.

“Também nunca fui preso!”

Camila participava do painel “Raízes e Asas: Literatura e Artes Sem Fronteiras – O Encontro de Mãe e Filha na Terra Natal” ao lado de sua mãe, Ivana Panizzi, quando convidou o autor Wesley Barbosa, que acabara de conhecer, para se juntar à mesa e apresentar seu livro Viela Ensanguentada – ele, que é de Itapecerica da Serra e integra o Coletivo Neomarginais (com estande próximo ao palco), estava no festival para divulgar sua obra. Durante a fala de Wesley, Camila questionou: “Como que faz para ser uma neomarginal?”, ao que ele respondeu: “Ah, basta você ser você mesma”; ela então perguntou: “Ai, vocês querem ser minha editora ou gráfica?”, e Wesley disse: “Vamos conversar”, Camila então continua: “Vamos, por favor! Eu quero ser uma neomarginal, gente. Olha que tudo! Camila Luz, neomarginal. Nunca fui presa, mas agora sou da sociedade, né?”.

O trecho da conversa viralizou nas redes sociais e gerou críticas não só aos comentários, como também à postura de Camila durante a conversa. É possível notar o desconforto de Wesley durante os questionamentos da outra autora. Em suas redes sociais, Wesley compartilhou o vídeo do evento e escreveu na legenda a frase “Também nunca fui preso!”, em resposta à fala de Camila. Em outra publicação, ele destacou: “Não queria fiar conhecido por ter sofrido racismo e sim por meus livros.

A produção de Camila emitiu nota afirmando que houve “uma fala infeliz” que pode ter sido “mal interpretada”, mas que a escritora “tem consciência de seus privilégios”.

O caso no Flipoços revela os desafios que persistem para a literatura marginal, desde a dificuldade de acesso ao mercado editorial até o combate a estereótipos. O episódio termina por destacar justamente o que o movimento sempre defendeu – a necessidade de ampliar as vozes que contam as muitas histórias do Brasil: “É o elitismo, principalmente no circuito tradicional (feiras, bienais), as pessoas que ocupam esse espaço seguem padrões que às vezes são distantes dos autores marginais, vem da academia ou são nepobabys literários de famílias de autores tradicionais”, destacou Ale Santos. “Não apenas quem está nos palcos, mas os curadores, quem escolhe os participantes e criam essa dissonância de colocar autores negros ao lado de pessoas completamente ignorante sobre nossos trabalhos”.

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