Mundo Negro

“Ela/Ele é quase da família” – a estratégia da branquitude para manter a escravização das pessoas negras

Foto: Reprodução/Freepik

Texto: Luciano Ramos

“Ela é quase da família”. Quantas vezes ouvimos essa frase ser dita por patroas e patrões brancos ao se referirem a empregadas domésticas? Quantas vezes, ao lado do fogão, no quarto de serviço ou no banco de trás do carro, mulheres negras são romantizadas em sua condição de submissão, como se carinho e afeto bastassem para encobrir a desigualdade brutal que define a estrutura do trabalho doméstico no Brasil?

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Há um tempo atrás, eu fui surpreendido por essa frase ao ser chamado para jantar na casa de um ex-chefe, no momento em que ele me apresentara a senhora que trabalhava na sua casa. Não satisfeito ele ainda dizia que aquela mulher era “uma santa” e que estava na família havia muito tempo.

Essa expressão é uma armadilha simbólica. Ao declarar que a empregada é “quase da família”, a branquitude reafirma sua posição de poder e reforça um tipo de relação que naturaliza a exploração, a informalidade e o apagamento da história escravocrata do país. A frase mascara a violência cotidiana imposta a corpos negros e pobres, sobretudo de mulheres, que seguem sendo herdeiras da senzala em uma casa que nunca será delas.

Segundo dados da PNAD Contínua (IBGE, 2022), cerca de 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres, mais de 65% são negras, e cerca de 70% estão na informalidade, sem carteira assinada ou direitos básicos. A PEC das Domésticas, aprovada em 2013, trouxe avanços legais — como jornada de trabalho regular, FGTS obrigatório e adicional noturno —, mas muitos desses direitos ainda não se efetivaram, especialmente em lares onde o racismo estrutural define as relações de poder.

O Movimento das Trabalhadoras Domésticas (MTPD), ativo desde os anos 1930, tem registrado e denunciado essa desigualdade histórica. Em um depoimento colhido pelo movimento na década de 1980, Creuza Oliveira, uma das lideranças mais importantes da categoria, declarou: “Eu comecei a trabalhar aos dez anos, como empregada interna. Dormia num colchão no chão da cozinha. Me diziam que eu era como filha, mas eu não podia sentar à mesa nem estudar. Só quem era da família de verdade podia.”

Outro relato, de Maria das Dores, trabalhadora de Salvador, registrado em entrevista ao Instituto Papai (2014), é ainda mais explícito:
“Quando eu pedi minha carteira assinada, a dona me disse: ‘você vai me tratar como patroa agora? Achei que você era como uma irmã pra mim’. E me mandou embora”.

Esses testemunhos escancaram a manipulação emocional e a camuflagem do racismo nas relações privadas. O afeto é usado como forma de silenciar reivindicações legítimas. O “quase da família” é, na prática, um lugar subalterno: o bastante para limpar a casa, cuidar dos filhos e da comida, mas nunca o suficiente para ter direitos, autonomia ou igualdade.

Além disso, é impossível dissociar essa lógica da herança colonial escravocrata. A historiadora Beatriz Nascimento já alertava, em seus estudos, que o espaço doméstico no Brasil é a extensão moderna da casa grande. A abolição de 1888 não significou liberdade plena, pois a ausência de políticas de reparação e inclusão manteve mulheres negras no mesmo lugar: servindo.

É urgente desromantizar essas relações. Entender que não há “quase” quando se trata de humanidade. Ou se é respeitada em sua dignidade plena ou se está sendo explorada. E, no Brasil, a exploração do trabalho doméstico negro continua sendo naturalizada, com verniz emocional e aparência de generosidade.

Romper com essa lógica exige ação política, educação antirracista, fortalecimento dos sindicatos e movimentos de empregadas domésticas, além de uma mudança radical na forma como as famílias brancas reconhecem (ou se recusam a reconhecer) seus próprios privilégios.
“Ela é quase da família” é, na verdade, uma frase que esconde: “Ela está aqui, servindo, como sempre foi, sem direitos, sem salário digno, sem liberdade.” E isso precisa acabar.

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