Principal dispositivo de acesso ao ensino superior de grupos anteriormente excluídos cumpre papel e é apoiado pela metade da população no ano em que completa uma década de existência
Texto: Ítalo Cosme e Patrick Freitas
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A Lei de Cotas completa uma década hoje e tem de passar por revisão este ano. Bem-sucedida, a política teve impacto na inclusão de grupos historicamente excluídos no ensino superior e, hoje, é apoiada pela metade dos brasileiros, conforme o Datafolha. Mas, após o primeiro decênio, já é possível identificar o que pode ser aprimorado. Neste especial de 10 anos, cotistas, especialistas e universidades apontam um rumo para avançarmos.
Na visão de especialistas e universidades, entre os pontos a melhorar estão as políticas de permanência, mecanismos de monitoramento, a fim de acompanhar a trajetória universitária dos cotistas, e a garantia de recursos para a legislação. Enquanto para os beneficiados, o enegrecimento do currículo, a expansão das cotas para pós-graduação e postos de trabalho, a inclusão de vestibulares indígenas, e a equivalência percentual étnico-racial de acordo com cada estado estão como metas a serem alcançadas.
Sob cenário de sucessivos ataques e redução de verbas, as instituições federais de ensino superior têm como maior desafio a permanência do universitário de baixa, que precisa de dinheiro para arcar com os gastos na universitário: material acadêmico, alimentação, transportes e moradia, por exemplo. Relatório Brasil com Baixa Imunidade – Balanço do orçamento geral da União 2019, publicado em 2020 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o ensino superior brasileiro perdeu 3,76 bilhões de reais nos cinco anos anteriores. Enquanto isso, houve aumento de 10% no aumento de matrículas no mesmo intervalo de tempo.
A exemplo de comparação, considerando os valores da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2019 corrigidos pelo Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) – a Universidade Federal de Viçosa (UFV) teve uma redução de 42,14% em seu orçamento.
Além disso, a instituição sofreu um bloqueio adicional de 14,5% no final de maio deste ano, comprometendo ainda mais o recurso, já insuficiente, do Pnaes. “Para atender a todos os estudantes em vulnerabilidade socioeconômica necessitaríamos do dobro de recursos aportados pelo Pnaes”, informou a UFV em nota.
Como sugestão de revisão, a UFV considera importante que a legislação garanta fontes orçamentárias para viabilizar a permanência do cotista. De forma “que permitam às instituições atuarem na manutenção das condições essenciais de sobrevivência e de acesso a materiais, equipamentos e recursos didáticos.” Para que, com isso, o aluno se dedique integralmente ao processo de ensino e aprendizagem, não se evadindo ao longo de sua trajetória acadêmica.
Pioneira na adoção de cotas entre as universidades federais, o bloqueio na Universidade de Brasília (UnB) representa mais de R$ 18 milhões do orçamento discricionário (aquele que o gestor tem a liberdade de decidir o que fazer). “Isso deve impactar o pagamento de despesas básicas como energia e água e garantir serviços como segurança e limpeza, além de comprar livros, equipamentos de laboratórios e garantir a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica”, destacou a instituição em nota.
“Universidades, que antes deixavam um salário mínimo e meio como teto da renda para receber benefícios, agora baixaram para um salário mínimo, justamente para atender os estudantes em maior dificuldade. Com isso excluímos quem ainda precisa da gente, mas não temos para onde correr”, lamenta a reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) , Joana Angélica, e representante da Andifes.
Acácio Sidinei Almeida Santos, coordenador do Observatório de Políticas Afirmativas do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis (Fonaprace) e pró-reitor da Universidade Federal do ABC, acrescenta: “podemos afirmar que a Universidade é mais diversa no que diz respeito à presença étnico-racial tratando-se especificamente da população negra e a representação de gênero. Mas, ainda falta a instituição atingir a população indígena e também a população quilombola.”
Continuidade x aprimoramento
Ex-titular do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes destaca que a avaliação do texto deve ser de continuidade. “A Lei de Cotas 12.711, de 2012, diferente da 12.990, de 2014, que são as cotas para concursos públicos, não estabelece um prazo de vigência, mas sim um prazo de avaliação. Avaliação não implica revisão. Tampouco, a descontinuidade”, ressaltou em audiência na Câmara dos Deputados.
A casa legislativa tem cerca de 40 projetos sobre o tema. Alguns pedem a revogação, como a proposta do presidente da Comissão de Educação na Câmara, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP). O projeto de lei propõe que as cotas sejam destinadas exclusivamente aos estudantes de baixa renda, proibindo a “discriminação positiva para o ingresso nas instituições de ensino com base em cor, raça ou origem”, segundo o deputado.
No entanto, há uma passividade tanto dos partidos de oposição quanto de situação em discutir o tema, seja pelo ano eleitoral, seja pela falta de dados. No estudo “Balanço dos dez anos da política federal de cotas na educação superior (Lei nº 12.711/2012)”, publicado pelo Inep, Ursula Mello e Adriano Souza Senkevics indicam a necessidade de, em primeiro lugar, quantificar, de forma mais definida, quem são os reais beneficiários das vagas reservadas para estudantes de escola pública.
“Uma alternativa para tornar o critério de procedência escolar mais inclusivo seria a ampliação da reserva para alunos que frequentaram, também, pelo menos os anos finais do ensino fundamental em escola pública. “
Para os autores, a reserva de vagas para estudantes de baixa renda é um critério de complexa administração, uma vez que exige múltiplas documentações sobre os rendimentos familiares, tornando mais fácil a omissão de informações relevantes. A sugestão, segundo eles, é aproveitar estruturas já consolidadas como as informações do Cadastro Único.
Em relação às vagas para PPI, a dupla de pesquisadores levanta dois pontos para discussão. O primeiro diz respeito à atualização do critério racial por meio da utilização de dados demográficos mais recentes para garantir a equidade racial nas unidades da Federação. Nas universidades de 10 estados, o porcentual de alunos PPI matriculados é superior ao registrado na UF.
“No cenário de idas e vindas no planejamento do Censo 2020, a adoção de alternativas para ancorar o critério étnico-racial é fundamental, evitando que a referência demográfica para ingresso de PPI nas instituições federais fique tão defasada quanto está se tornando na atualidade”, analisam os autores.
Outro caminho a ser discutido, para Mello e Senkevics, é o de evitar que um candidato dispute a vaga apenas no critério que ele assinalou. Hoje, por exemplo, quando o concorrente indica que quer disputar a vaga que considera renda, raça e onde cursou ensino médio, ele vai concorrer apenas nesta modalidade. Possibilidade com menores distorções, segundo eles, pode ser o de considerar também a concorrência de outras
Para Adriano Senkevics, é necessário entender um panorama macro: como tem mudado o perfil discente de quem frequenta, do ponto de vista de rendimento domiciliar per capita, escolaridade parental, a procedência escolar do aluno tanto no ensino médio quanto no fundamental, por exemplo. Estes pontos estão ausentes no censo do ensino superior.
As bancas de heteroidentificação, adotadas pelas universidades nos últimos anos para evitar fraudes nas vagas reservadas, também podem ser tomadas como parâmetro em caso de revisão. “A questão é como a gente pode, nos próximos 10 anos de vigência da lei, partir da experiência acumulada na última década, para instruir melhor a atuação das comissões em como atuar com mais celeridade”, indica Senkevics.
Ele ressalta a importância de evitar o mau uso da política no ato da matrícula, em vez de arrastar por anos um processo judicial, que às vezes culmina na expulsão de um aluno nos últimos semestres, o que é extremamente ineficaz.
Acompanhamento
Segundo Luiz Augusto Campos, coordenador do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022, parceria entre o Grupo de estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa), da Uerj, e o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a falta de dados parte de dois princípios.
“A gente sabe quem fez o Enem. Mas não sabemos se quem fez foi realmente para a faculdade ou entrou no SISU. O próprio SISU tem uma base muito boa, mas não permite entender quem se formou efetivamente”, analisa. Apesar da boa base de dados que o Brasil construiu ao longo dos últimos anos, pondera, há falta de integração entre elas.
Já o segundo aspecto apontado pode ser o político. Campos analisa que os últimos governos estacionaram e até regrediram em relação à integração da base de dados. Além disso, muitos órgãos utilizam de forma errônea a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para negar o acesso a essas informações, mesmo com pedidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Adriano Senkevics indica que a evolução da discussão deve girar em torno de como integrar e compartilhar melhor as bases de dados, além de permitir que as universidades tenham acesso aos dados do Sisu, para permitir o cruzamento e acompanhamento longitudinal dos mesmos indivíduos.
Assim como o coordenador da Geema, Adriano considera a LGPD como maior entrave para o avanço das discussões. “A interpretação tem impedido articulação maior entre as diferentes bases de dados. Acho que a gente vai precisar rever o entendimento, eventualmente até fazer uma emenda à legislação”.
Ele reitera a necessidade de resguardar o sigilo. “A segurança da informação é fundamental, é um pressuposto das estatísticas oficiais. Mas isso não pode acontecer à custa da transparência e da realização de pesquisas com finalidades públicas. A gente precisa permitir o entendimento da legislação que seja mais propositiva do ponto de vista de produção de conhecimento”, recomenda.
O Gemaa lançou em 2021 a pesquisa “Políticas de Ação Afirmativa nas Universidades Federais e Estaduais (2013-2019)” que afirma que em 2019, as universidades federais ofereceram 263.286 vagas, sendo que 137.934 delas (52%) foram destinadas aos diferentes arranjos de ação afirmativa, com destaque para as cotas raciais (27%), que corresponde a cerca de 37,2 mil oportunidades. Em 2012, ano em que a legislação entrou em vigor, foram ofertadas 30.264 vagas para cotistas de modo geral, incluindo deficientes, por exemplo.
Na reportagem de amanhã, o Site Mundo Negro apresenta as mudanças necessárias indicadas pelos cotistas, que contam suas histórias de luta e resistência dentro do ambiente universitário.
Esta pauta foi selecionada pelo 3.º Edital de Jornalismo de Educação, iniciativa do Itaú Social e da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca).