Quando dizemos que o racismo está enraizado na estrutura social que vivemos precisamos imaginar inúmeras situações em ele pode interferir e a doação de órgãos é uma delas. O assunto sempre vem à tona como algo altruísta, como uma situação que acontece para beneficiar as pessoas, e sim, quando um órgão doado possibilita que uma vida seja salva, é algo que deve ser celebrado. Mas em uma sociedade racista, até mesmo pessoas negras podem ser prejudicadas com um sistema de saúde que não nos favorece em uma lista imensa e que também nos coloca como “principais doadores” e os motivos disso são os mais dolorosos possíveis.
No estudo “Desigualdade de transplantes de órgãos no Brasil: Análise do perfil dos receptores por sexo e raça ou cor”, de 2011, os autores fizeram uma análise que pode nos ajudar a entender o cenário da doação e recepção de órgãos no país. De acordo com a pesquisa, que se concentrou em analisar dados de Belo Horizonte, as barreiras para receber e doar órgãos podem ser vistas nos quesitos raciais e sociais.
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A pesquisa afirma que as mortes por causas externas, que muitas vezes afetam pessoas jovens e saudáveis, podem aumentar o potencial de doadores de órgãos. No Brasil, as causas externas representam uma parte significativa das mortes, e a maioria das vítimas é do sexo masculino. Além disso, Ao observar a divisão por cor ou raça, nota-se que a maioria das mortes por causas externas ocorre entre a população não branca (pretos e pardos), indicando um número potencial de doadores para transplantes de órgãos.
E entende-se que mortes externas são mortes consideradas “não-naturais”, aquelas provocadas por acidentes de trânsito, homicídio ou suicídio, por exemplo.
A questão sócio-econômica também pode ser um impeditivo para que pessoas negras e pobres recebam uma doação, considerando que a pesquisa mostrou que pessoas que possuem plano de saúde têm maior garantia de acesso a transplantes. O estudo também trouxe a informação de que a maioria dos receptores de transplante de coração é da cor branca (56%), mesmo que a maior proporção de mortalidade por doenças do aparelho circulatório seja encontrada na população preta.
Uma das pessoas que agora integra a lista do Sistema Único de Saúde esperando para receber o órgão é o apresentador Fausto Silva, de 73 anos, que teve um quadro de insuficiência cardíaca agravado e precisa de um novo órgão, apesar de estar marcado pelos privilégios que o estudo de 2011 demonstrou. No Brasil, no mês de março, mais de 55 mil pessoas aguardam por um transplante, de acordo com dados mais recentes publicados pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, sendo São Paulo um dos estados com maior número de pessoas na lista de espera, com 20.288 pacientes. Assim como Faustão, 184 delas integram a fila de pacientes que esperam por um coração em São Paulo. No Brasil, esse número chega a 310 pacientes que precisam receber um coração.
A lista para receber um novo órgão funciona por ordem cronológica do cadastro de pacientes. E entre os critérios para a realização de um transplante de órgãos está a gravidade do quadro de saúde do paciente, tipo sanguíneo, a compatibilidade genética entre doador e receptor, localização (considerando o tempo de duração do órgão fora do corpo), além disso, crianças têm prioridade caso o doador seja uma criança.
Apesar de parecer que temos muitos dados, não existe uma análise minuciosa sobre quem são essas pessoas e quais lugares elas ocupam na esfera social que mobiliza doações e receptores. As informações são limitantes e ignoram fatores importantes sobre a saúde da população que podem contribuir para a implementação de políticas antirracistas até mesmo nesse âmbito. E não, não são cotas para receber órgãos, mas a verdadeira universalização de um sistema que se propõe universal.
Mesmo que novas pesquisas sobre transplante tenham sido publicadas em revistas científicas como a Brasilian Journal of Transplantation, ainda é difícil encontrar dados que tenham recortes de raça, gênero ou classe social, o que deveria se tornar uma obrigatoriedade e que permitiria que caminhos e novas soluções fossem desenvolvidas pensando populações pouco assistidas por tratamentos de saúde de qualidade.
Essa ineficiência em atender os nossos, somada ao fator de que somos nós quem morremos para que eles vivam é morrer mais uma vez porque mesmo quando nos cuidamos, somos negligenciados por quem deveria ser responsável por promover saúde para todas as pessoas em igualdade de oportunidades de tratamentos. Essa é uma lista em que somos colocados em último lugar e assim somos mantidos porque para nós ela flui como deveria.