A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro a pagar uma indenização de US$ 4 milhões (cerca de R$ 23 milhões) por violações aos direitos humanos de 171 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, impactadas pela construção e operação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), base espacial administrada pela Força Aérea Brasileira. A sentença, notificada no dia 13 de março, também determina a titulação de 78.105 hectares de terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas.
A decisão da Corte IDH, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), reconhece que o Estado brasileiro violou os direitos à propriedade coletiva, à livre circulação, à consulta prévia, à alimentação adequada, à moradia e à educação, entre outros, das comunidades quilombolas de Alcântara. O município, que tem cerca de 18 mil habitantes, abriga a maior população quilombola do país, com quase 85% dos moradores vivendo nessas comunidades.
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A instalação do CLA, em 1983, resultou no deslocamento compulsório de centenas de famílias quilombolas, que foram reassentadas em agrovilas. A base espacial, criada para lançamentos de satélites e experimentos aeroespaciais, ocupou uma área de 52 mil hectares inicialmente, ampliada posteriormente para 62 mil hectares. As comunidades, no entanto, nunca foram consultadas de forma adequada sobre o projeto, conforme exigem tratados internacionais de direitos humanos. A Corte IDH destacou que o reassentamento das famílias nas agrovilas prejudicou o acesso a recursos naturais essenciais para sua subsistência, além de limitar práticas culturais e religiosas. As comunidades também enfrentaram dificuldades para modificar ou construir novas moradias, o que resultou na separação de famílias e na impossibilidade de acolher novos membros.
Reparações ordenadas
Além da titulação das terras e da indenização, a Corte ordenou que o Estado brasileiro adote medidas para garantir o pleno uso e gozo do território pelas comunidades, incluindo a realização de consultas prévias, livres e informadas sobre qualquer medida que possa afetá-las. O tribunal também determinou a instalação de uma mesa de diálogo permanente entre o governo e as comunidades, além de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional pelo Estado.
A decisão ainda exige que o Brasil se abstenha de permitir que terceiros ou agentes estatais interfiram no território quilombola, exceto no que diz respeito ao funcionamento do CLA. A Corte também destacou a necessidade de medidas para garantir o acesso à educação, à alimentação adequada e à moradia digna nas agrovilas.
Reconhecimento parcial de responsabilidade
O Estado brasileiro reconheceu parcialmente sua responsabilidade pela violação do direito à propriedade coletiva e pela falta de demarcação e titulação das terras quilombolas. No entanto, a Corte IDH considerou que o Brasil falhou em adotar medidas suficientes para reverter as desigualdades históricas enfrentadas pelas comunidades, caracterizando os fatos como atos de discriminação.
Alcântara foi uma das primeiras regiões do Brasil a receber africanos escravizados. Às vésperas da independência, em 1822, o Maranhão tinha o maior percentual de pessoas escravizadas do Império, com cerca de 55% da população. As comunidades quilombolas da região são formadas por descendentes de africanos que escaparam da escravidão ou já eram livres, mantendo uma relação profunda com o território e práticas culturais específicas.
Próximos passos
A sentença da Corte IDH é definitiva e não cabe recurso. O Estado brasileiro terá um prazo para informar sobre o cumprimento das medidas ordenadas. A decisão representa um marco na luta das comunidades quilombolas de Alcântara por justiça e reparação, após décadas de impactos causados pela instalação da base espacial.
Histórico de conflitos na região
Há dois anos, quilombolas do Quilombo de Vista Alegre, localizado em Alcântara, no Maranhão, foram alvos de uma tentativa de despejo por agentes da aeronáutica e do batalhão de choque. Famílias que vivem há cerca de 40 anos no local denunciaram a ação violenta dos agentes do governo que tentam tomar as terras há anos. De acordo com os quilombolas, foram utilizadas bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra idosos, mulheres e crianças que também ficaram feridas durante o confronto. Eles também denunciam que nenhum órgão de Direitos Humanos foi ao local para prestar solidariedade ou intermediar a situação.
Em nota, a Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara, onde está localizada a comunidade de Vista Alegre, junto com outros movimentos ligados ao quilombo, afirma que pode “adotar medidas”para “responsabilizar órgãos e agentes omissos”: “não descartamos ainda a possiblidade de adotar as medidas judiciais para responsabilizar os órgãos e agentes públicos omissos, uma vez que a ação resultou em violações a direitos e garantias fundamentais de toda a comunidade, extrapolando os limites do empreendimento”.
De acordo com a nota emitida, a ação de reintegração de posse é direcionada contra um pequeno restaurante privado que pertence a um morador do quilombo e é demandada pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). A nota diz ainda que “a comunidade está no centro de uma disputa histórica com os militares da Força Aérea Brasileira lotados no CLA, que ilegalmente sustentam serem proprietários da área”.