Por Juliana Gonçalves *
Quatro mulheres negras se apresentam em discursos encharcados de dor, desespero e revolta. Histórias de vida que denunciam o racismo praticado por brancos em posições de poder. Mulheres marcadas por estereótipos que recaem sobre os diferentes tons da pele negra que logo rememoram a escravidão e o passado, nem tão distante, de privações. Assim, a cantora Nina Simone apresenta sua canção Four Women.
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Áspera e enternecedora, a música não conta explicitamente a história de uma mulher solitária, mas sim traz a própria solidão como pano de fundo. Esse abandono, sem dúvidas, tem uma carga social e afetiva sendo muitas vezes protagonizado por um homem negro.
Entender esse homem negro e como ele também padece dos efeitos do racismo e do machismo parece ser necessário para aprofundar essa questão.
No Brasil o racismo se dá, dentre outros, marcadamente pelo tom da pele, então a visão do corpo masculino e as noções de corporeidade – maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo- podem dar pistas sobre os processos sociais e afetivos vividos pelo homem negro.
Para Alex Ratts – Professor da Universidade Federal de Goiânia e Doutor em Antropologia que estuda masculinidades -, corpos negros são geralmente racializados e subdivididos. “Os corpos racializados estão em toda a parte, nos livros, nos textos e ilustrações, nas músicas, em tudo”, considera ao destacar que essa racialização embute uma desumanização, a ideia de um corpo à deriva a ser dominado.
As mulheres bem sabem o quão devastadora pode ser a permissividade com que esse corpo, visto como público, é tratado. Com os homens não é diferente. A violência física e simbólica sofrida pelo corpo negro tem bases sólidas nas relações das posições de gênero, no racismo, na estrutura de classes, entre outras formas de opressão.
Não raro o viés de gênero é identificado pelo elevado número de jovens negros mortos pela violência urbana nas grandes capitais. Esse corpo negro mais facilmente encarcerado e morto tem sua subjetividade (e processo de construção da identidade) constantemente bombardeada.
O fetiche lançado sob o corpo negro masculino influenciaria as relações interpessoais e de cunho afetivo. Para o ator e pesquisador da afetividade negra e questões de gênero, Sidney Santiago essa fragmentação do corpo negro acarreta na tentativa de anulação das subjetividades e recusa do processo afetivo. “A partir do olhar do outro, o homem negro se molda socialmente para dar prazer e tem um processo de construção da identidade que perpassa pela hiperssexualização de sua imagem”, considera.
Vale destacar que nessa visão está-se incluindo as relações homoafetivas. Sobre isso, Santiago pontua: “Os homens negros não têm possibilidade histórica de pensar sua afetividade, sem ser pelo recorte da heteronormatividade”.
O homem negro, assim é condicionado a ser mais forte (psíquica e fisicamente) e mais viril que os demais.
Santiago considera que as relações afetivas do homem negro, principalmente as interraciais, estão carregadas do culto ao exotismo. “É o desejo, o fetiche pelo corpo negro e, claro, a idealização do pênis que imperam”, opina.
Paixão peniana
“Identificar o pênis sempre e unicamente como força, como sendo um instrumento de poder, uma arma primeiro e acima de tudo, é participar no reverenciamento e perpetuação do patriarcado. É a celebração da dominação masculina.”
A escritora afro-americana e teórica feminista, bell hooks*, em seu texto intitulado “Pennis Passion”, fala sobre como a visão do falo como ferramenta de força é falha e conservadora e, acima de tudo, aprisiona homens e mulheres. “O texto ousado de bell hooks mostra as questões de poder e subordinação atreladas ao simbolismo do órgão masculino e quando falamos de um corpo negro a referência da hiperssexualização sempre se dá pelo enfoque no falo”, comenta Alex Ratts.
No texto bell sugere a ressignificação peniana como forma de libertação de homens e mulheres. “Mudar a forma como falamos sobre o pênis é uma poderosa intervenção que pode questionar o pensamento patriarcal. Muitos homens sexistas temem que seus corpos percam significado se nós avaliarmos o pênis mais pela sacralidade da sua existência do que pela sua capacidade performática”, indica.
O que homens negros podem aprender com as mulheres negras
Na década de 1990, uma grande militante feminista negra falava a cerca dos aspectos políticos, sociais e afetivos da solidão da mulher negra que já era preterida inclusive pelo homem negro.
Há muito anos a mulher negra padece da estereotipização de seu corpo. Porém, a história de luta das mulheres negras, vem trabalhando na ressignificação desse corpo. Sobre isso, Osmundo Pinho escreveu: “Elas têm desenvolvido, com maior grau de consciência crítica, uma relação com o próprio corpo, para resguardá-lo, reinventá-lo, dignificá-lo, apropriar-se dele, negar significados estereotipados…”
Esse acúmulo das mulheres negras está sendo acessado por alguns homens negros, porém, muito timidamente. Os homens também são formados dentro da lógica do patriarcado regida pela relação de superioridade e dominação. “Poucas vezes na vida de um homem ele é levado a questionar a sua subjetividade pessoal que está atrelada ao coletivo, econômico e cultural. Isso precisa mudar”, conclui Ratts.
* bell hooks tem seu nome grafado em letras minúsculas, sobre isso diz: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”.
Imagem 1: Jean-Baptiste Debret
Bibliografia
____ Ratts, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do Movimento Negro de base acadêmica. Nguzu, Londrina – PR, Ano 1, n. 1, março/julho de 2011. Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos (NEAA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Leia aqui.
_____ Pinho, Osmundo, Qual é a identidade do homem negro?. Democracia Viva, nº22, junho/julho de 2004. Revista do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
_____ hooks, bell. Pennis Passion. Leia aqui.
_____ Nascimento, Beatriz. A mulher negra e o amor. Jornal Maioria Falante. Rio de Janeiro. Março de 1990.
*Juliana Gonçalves é jornalista e assessora de imprensa do CEERT