Mundo Negro

Como nasceu o Julho das Pretas: da luta à mobilização nacional

Foto: Divulgação/MNU

O Julho das Pretas tem movimentando as redes sociais. Mas você conhece a origem dessa história? Ou você estava achando que foram as redes sociais (quase deuses) que escolheram esse mês, aleatoriamente? Não. Não foi assim. O nascimento e batizado do mês de julho para marcar os movimentos de luta das mulheres negras no Brasil foi feito pelas protagonistas do movimento, por meio de articulação e organização social e política. E, falando nas protagonistas, estavam entre o elenco Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e tantas outras. Pois, como nos lembra Jurema Werneck: nossos passos vêm de longe! Se você, cara leitora / caro leitor, não conhece um ou dois desses nomes, não tem problema. Fica aqui, que você vai entender e conhecer essas estrelas (além do tempo). 

Para entender o Julho das Pretas, é preciso olhar para além das hashtags. Esse mês nasce da força histórica de articulação política das mulheres negras no Brasil, que transformaram suas vivências e teorias em organizações, comitês, núcleos, redes — enfim, num movimento social fundamental para nossa sociedade. Aqui, vamos revisitar alguns dos marcos dessa história, como o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, em 1988, e a criação da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB). Cada um desses momentos foi decisivo para que hoje pudéssemos nomear, celebrar e reivindicar essa história.

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Mas vamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente para as décadas de 1970. Em plena ditadura civil-militar, os movimentos negros e de mulheres, assim como outros movimentos sociais, estavam em pleno vapor. O ato de fundação do MNU (Movimento Negro Unificado) foi em 1978 — e as mulheres negras estavam lá. No movimento negro, lado a lado na luta. Mas, muitas vezes, ficavam atrás. Não porque queriam — mas porque o machismo fazia isso. Eram elas que organizavam, cuidavam, puxavam a base. Mas, nas decisões, quem falava eram os homens. No movimento feminista, encontravam outras barreiras. As mulheres negras estavam presentes, mas suas vivências não apareciam. A luta contra o machismo era urgente, sim — mas e o racismo? E a pobreza? E os corpos que nunca couberam no ideal branco de mulher? Ser mulher negra era viver numa interseção que ninguém queria ver. E foi desse apagamento duplo que nasceu a necessidade de construir outro caminho. Por nós. Com a nossa cara.

Um exemplo dessas tensões entre os movimentos aconteceu em março de 1979, no Encontro Nacional de Mulheres, no Rio de Janeiro. Na ocasião, a intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez chamou a atenção para a importância da questão racial nas relações entre mulheres negras e brancas, lamentando que, na época, não houvesse o mesmo consenso sobre o racismo que existia em relação a outras pautas femininas. Lélia denunciou que o movimento feminista, ao negar o racismo, buscava esconder a dominação e a exploração que mulheres brancas exerciam sobre mulheres negras. Ela observou que, durante aquele encontro de 1979, as feministas brancas, mesmo alinhadas a ideias progressistas e de esquerda, não reconheceram a urgência de incluir a pauta racial. A unanimidade em torno da luta contra a exploração da mulher e do trabalhador desaparecia quando o tema era o racismo e a influência da raça na vida das mulheres negras.

Foi outra intelectual e ativista negra que tão bem sintetizou essas tensões. Foi Sueli Carneiro quem traduziu, com precisão política, essas tensões. Para ela, a luta antirracista precisava caminhar junto da luta feminista — não como complemento, mas como parte indissociável. E vice-versa. Era urgente enegrecer o feminismo e feminilizar o movimento negro. Sueli nos ensinou que enfrentar só uma parte da opressão era insuficiente.

Um marco fundamental para o movimento de mulheres negras foi a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que aconteceu em dezembro de 1988, em Valença (Rio de Janeiro). Mas, para a concretização em nível nacional, foram meses de articulações municipais, estaduais e regionais. Em julho de 1988, Salvador sediou um dos marcos mais importantes da mobilização de mulheres negras no Brasil: o seminário “Mulher Negra Cem Anos Depois”, que reuniu cerca de 750 participantes. Organizado pela União de Mulheres do Nordeste de Amaralina, o evento abordou temas como mercado de trabalho, sexualidade, educação e trajetória histórica da mulher negra — desde a escravidão até o fim dos cem anos da abolição. Sueli Carneiro e Sonia Ribeiro contribuíram com análises fundamentais nesse processo. O seminário foi um dos principais impulsos para o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, e suas participantes — vindas de entidades do movimento negro, feminista, sindicatos e associações — foram escolhidas em eventos preparatórios regionais.

Há quase 40 anos, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras foi um passo fundamental para a luta pelos direitos diante das diversas formas de opressão. Passos coletivos — porque, para nós, o individual é coletivo e o coletivo é individual. Nas redes, nas ruas, nos sindicatos, no parlamento, nas novelas — juntas, de diferentes formas, construímos o movimento de mulheres negras com nossas vidas, militâncias e existências resistentes.

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