Em um trecho do livro “Espírito da Intimidade”, da filósofa africana Sobonfu Somé, ela afirma: “A comunidade é uma base na qual as pessoas compartilham seus dons e recebem as dádivas dos outros”. Essa ideia encontra eco na trajetória da chef de cozinha Cintia Sanchez, que deixou o jornalismo e a fotografia para se dedicar à gastronomia. Ela participou de duas edições do MasterChef: em 2014, na versão para amadores, e depois de fazer estágios com chefs renomados e se profissionalizar, em 2023 esteve na edição para profissionais. Cintia tem se dedicado a cozinhar para pessoas em situação de rua por meio do coletivo ‘É Tudo pra Ontem’, que ajudou a fundar, e em parceria com o projeto ‘Banho Pra Geral’. Não é por acaso que a fundadora do Manje Culinária, serviço de catering, consultoria e personal chef, está frequentemente ao lado do Padre Júlio Lancellotti, que conhece desde a infância graças à militância exercida por seu pai.
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Cintia Sanchez cresceu em um ambiente rural, cuidando da horta e onde a cozinha era o coração da família. Filha de uma enfermeira, a chef era cuidada pela avó, que também cuidava de uma horta e de outros netos, chegando a preparar refeições para até 14 pessoas diariamente, ela aprendeu desde cedo a cozinhar. “Minha avó era uma dona de casa que cuidava da horta e da comida de todo esse povo. Então, às vezes, tinham 14 pessoas para almoçar em casa”, relembra. Aos 12 anos, assumiu a responsabilidade de preparar o almoço para o avô e o pai, enquanto a avó enfrentava problemas de saúde. “Eu comecei a cozinhar o básico: arroz, feijão, verduras da nossa horta e uma proteína”, conta.
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A paixão pela cozinha a levou a cursos de confeitaria e panificação, mas a vida a conduziu por outros caminhos. Formada em jornalismo, com passagens por grandes veículos como Folha de S. Paulo, istoÉ e Veja, Cintia só retomou a gastronomia de forma profissional após uma experiência marcante. Durante uma pena social alternativa, por conta de um conflito com um advogado, ela se envolveu com uma cozinha comunitária de uma instituição que atendia crianças que eram filhos de pessoas infratoras e que estavam sendo tutelados pelo Estado. “Vi que a cozinha precisava mais de ajuda do que a sala de aula porque professora tinha um jeito muito truculento de agir e com a minha aproximação na cozinha eu conseguia ter mais acesso de carinho às crianças. Então eu caí na cozinha com a Vilma e aí uma pena social alternativa que era para durar três meses eu acabei ficando um pouco mais de um ano”, relata.
Foi nesse período que Cintia se aproximou ainda mais da população em situação de rua, iniciando uma jornada de militância e ativismo. “Eu conheci o Marcos, que vivia na rua, e ele ficou 11 anos no meu portão. Foi ali que resgatei a gastronomia em mim e o trabalho com a população em situação de rua”, explica. A partir daí, sua trajetória na gastronomia se entrelaçou com a filantropia, culminando na criação do coletivo É Tudo Pra Ontem, fundado em 2021, durante a pandemia da COVID-19 e que oferecia assistência para a população de rua do centro de São Paulo.
Quando questionada sobre como se prepara para o trabalho em uma cozinha comunitária, Cintia emociona-se: “Eu acho que quem prepara a gente é a vida, a história das pessoas, a urgência, a necessidade, tanto que o nome do meu projeto é ‘É tudo pra ontem’, porque a fome não espera, a fome tem pressa, e quando a gente tá numa cozinha a gente quer alimentar, e alimentar cada vez mais gente, alimentar todos aqueles que forem possíveis, e doar, sabe? Eu tenho pensado muito nisso, e é um eterno servir mesmo”, afirma.
Mais de 300 voluntários diretos ou indiretos nos projetos sociais
Atualmente, o coletivo É Tudo Pra Ontem, no projeto de cozinha solidária, comunitária e cozinha-escola, cerca de 120 pessoas estão envolvidas. Já o projeto Banho pra Geral, do qual Cintia também faz parte, reúne mais de 200 voluntários. “É um projeto que está crescendo muito, que na verdade eu sempre sonhei assim e, de repente, eu estava lá na casa de oração da Pastoral do Povo de Rua [liderada pelo padre Júlio Lancellotti] e aí eu conheço eles fazendo esse trabalho e sou convidada a participar do segundo banho. E já se passaram quatro anos e a gente segue aí, que cada vez mais forte e indo em territórios cada vez mais complexos onde não tem muito acesso de políticas públicas. Eu acho que o banho, devia ser um projeto, sem dúvida, de política pública”, opina. “A gente vai em territórios complexos, como a beira de córregos, onde não chega ajuda”, relata.
A logística para preparar e distribuir as marmitas envolve uma rede de doadores variada. “Temos desde pessoas físicas que doam um pacotinho de arroz até parceiros como o o Instituto Chão, a Tarta Pão, o CESP, o Banco de Alimentos”, explica Cintia. Ela também recebe doações de programas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “PAA é o programa de aquisição de alimentos do Governo Federal que muitas vezes manda mandam coisas para a gente através de outras cozinhas e de outras frentes. Chega de tudo quanto você puder imaginar. Às vezes no meu Instagram chega um recadinho de uma pessoa que tá lá em Rondônia, por exemplo, e fala que quer me ajudar e transfere um dinheirinho para campanha. Então é o Brasil inteiro, é o mundo porque eu já recebi coisas que vieram de doação da Espanha, de uma pessoa que veio da Espanha e me deu várias panelas. Na internet, depois da minha visibilidade do MasterChef, teve muito mais alcance. E agora, estou cada vez mais próxima, do ladinho ali do Padre Júlio, me dá também uma visibilidade de alcance e credibilidade no meu trabalho, que faz as pessoas contribuírem mais”, brinca.
O equilíbrio entre o trabalho remunerado e o filantrópico
Cintia divide seu tempo entre o serviço de catering, sua principal fonte de renda, e o trabalho filantrópico. “Meu trabalho remunerado é a Manje Cculinária, meu serviço de catering. E o filantrópico é o É Tudo Pra Ontem. Mas, na verdade, eles acabam sempre se juntando”, explica. Ela admite que, muitas vezes, usa recursos do catering para suprir necessidades do projeto social. “Como toda pessoa apaixonada, a gente se doa muito mais do que a gente ganha”, reflete. No entanto, ela busca profissionalizar a gestão dos projetos para garantir que todos envolvidos sejam remunerados adequadamente.
Os pratos estratégicos
Na hora de preparar as marmitas, Cintia prioriza pratos que não estragam facilmente. “Eu evito creme de leite, por exemplo, porque pode azedar. Prefiro comidas triviais, como arroz, feijão, farofa e picadinho de carne”, explica. Ela também busca incluir temperos frescos para realçar o sabor, já que muitas pessoas em situação que são dependentes químicas acabam perdendo o paladar. “A grande estratégia é usar tempero fresco e comida fresca. Faça aquilo que você comeria”, recomenda.