A escolha de Cidade de Deus como um dos melhores filmes do século XXI não causa
espanto. A obra tem ritmo, força estética, narrativas marcantes. É, sem dúvida, uma aula
de cinema. Mas a aclamação do filme também nos obriga a encarar uma questão
incômoda: por que as histórias de dor, violência e morte de pessoas negras se tornaram
nosso principal produto cultural de exportação?
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Cidade de Deus é, essencialmente, um filme sobre juventudes negras. Mas não sobre
seus sonhos, suas invenções ou suas alegrias. É sobre sua criminalização, sua morte
precoce, sua exclusão brutal. E isso importa. Porque quando o cinema brasileiro e
internacional celebra essa narrativa como obra-prima, o que se está exaltando não é
apenas o cinema, é o imaginário de que corpos negros são sinônimo de tragédia, de
barbárie, de violência.
O que significa para o Brasil que um dos seus maiores sucessos audiovisuais seja a
romantização, com boa trilha sonora e fotografia caprichada , da falência do Estado
sobre um povo majoritariamente negro e favelado? Que lugar esse filme ocupa na nossa
memória coletiva? Que tipo de humanidade ele permite que a gente enxergue nas
personagens negras que retrata?
Mais que isso: quem se beneficiou com esse sucesso? Muitos dos atores negros,
retirados diretamente das favelas para dar realismo à obra, voltaram ao anonimato, à
precariedade, à mesma marginalização que o filme denuncia. O Brasil que aplaudiu o
filme não garantiu sequer oportunidades reais para os jovens negros que o interpretaram
com tanta verdade. Isso também é racismo estrutural.
Cidade de Deus é brilhante, sim. Mas sua consagração internacional também revela uma
lógica perversa: a sociedade brasileira só parece interessada em escutar vozes negras
quando elas falam de dor. Quando o negro chora, morre ou mata — a câmera liga.
Quando ele sonha, lidera, constrói ou transforma — o enquadramento desaparece.
É preciso perguntar: e se Cidade de Deus fosse sobre crianças negras que escrevem,
inventam, aprendem, dançam, curam, governam, cuidam umas das outras? Será que
teria sido aclamado do mesmo jeito?
Precisamos tensionar essa narrativa.
Porque não basta aplaudir o talento do filme, se não nos indignarmos com o projeto de
país que ele revela — e que ainda se mantém: um país que filma meninos negros com
armas, mas nega a eles livros, filmes, verbas, visibilidade e existência plena.
Celebrar Cidade de Deus é, sim, reconhecer a potência do cinema brasileiro. Mas é
também oportunidade para denunciar que ainda são os corpos negros os que mais
sangram para sustentar a estética do nosso cinema. Está na hora de esses corpos também
contarem suas próprias histórias — não só com dor, mas com dignidade, afeto e futuro.
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