Lisiane Lemos: “Eu escolhi cuidar das pessoas que gosto, e esse nível de autoconhecimento é muito importante”

Por Rodolfo Gomes em parceria com Victória Gianlorenço

Foi em uma pequena cidade no interior gaúcho, chamada Pelotas, que Lisiane Lemos nasceu e cresceu junto com mais de 20% da população preta que faz parte da região.

O fato de viver em cidade que historicamente já carregava o racismo, fez com que ela, desde pequena, quisesse ir embora da cidade. “Ir embora era na verdade uma forma que eu encontrei de encarar aquilo que eu mal conseguia compreender”, contou.

Mas aquela menina cresceu, e após alguns anos acabou retornando a sua cidade natal, e isso para ela foi uma forma de se reconectar com a suas raízes e ressignificar cada uma das situações que vivenciou.

Lemos veio de uma família de educadores: sua avó, mãe e tias foram por muitos anos professoras de escola de periferia, o que o fez imaginar que ela também seria.

“O estudo sempre foi a única coisa que vamos te deixar e que vai te tirar deste lugar” foi uma das frases que ela mais ouviu da sua mãe. Dona Rosemar Lemos, mesmo com uma situação financeira difícil não deixou de lutar para que os filhos tivessem acesso as bolsas de estudo e pudessem ter um ensino de qualidade.

Assim como a realidade de muitos pretos, a dela não foi diferente: sofreu racismo desde pequena, mas aprendeu que era preciso resistir, para seguir em frente. “Lembro como se fosse ontem quando teve uma festa de aniversário no McDonald´s e só eu uma amiga parda não fomos convidadas”, comentou.

Filha de funcionários públicos, desde muito cedo ela teve que encarar o racismo de frente, sendo uma das poucas pretas, em uma escola que estava um pouco à frente do tempo, e tratava de diversidade quando isso ainda nem era pauta.

Este episódio na escola foi um grande divisor de águas na sua vida. Foi depois desse acontecimento que originou “a conversa“ com seus pais.“ Quando lembro desse dia, me pergunto como vai ser quando eu precisar ter essa mesma conversa com meus filhos” confessou. A tal conversa, conhecida pela maioria do povo preto, é quando os pais precisam falar sobre racismo com os filhos, explicando o quanto a vida será difícil, em um país cujo racismo é estrutural.

Ao relembrar esses momentos Lisiane se sente grata, afinal, se não fosse isso ela não teria mudado a sua vida e inspirado tantas pessoas. “Sou grata mas confesso que não quero mais pessoas passem por isso”, desabafou.

Nascida em uma família completamente matriarcal, onde as mulheres tomam conta de tudo, ela sempre quis conhecer o mundo, e sabia que o fato de ser uma boa aluna a tornaria uma profissional diferente em qualquer ambiente.

Advogada por formação, pela Universidade Federal de Pelotas optou por trilhar sua carreira em vendas e tecnologia. Entrou no mercado de tecnologia quase que por acidente. Vendedora nata, aprendeu que seu forte é resolver problemas complexos, sendo remunerada por isso.

Na academia, buscou pelo máximo de atividades extracurriculares, para se encontrar. Desde projetos sociais a estágios não remunerados, mergulhou de cabeça no processo de aprendizado. Formada em direito, tinha certeza de que seu futuro não era no direito, e sim na área de vendas.

A busca sobre sua origem sempre fez parte de sua vida, já que na escola a história muitas vezes é apagada, durante a faculdade resolveu se envolver em projetos de empoderamento do povo preto para conhecer de fato suas raízes ancestrais.

Exímia tocadora de atabaque, aprendeu na cultura e dança afro muito sobre a importância da arte enquanto manifestação e união do povo preto. Viu que seria rico para sua carreira ter a vivência no exterior, e escolheu o continente africano, no Moçambique, para ter sua primeira experiência internacional.

Sem muitas coisas certas e sem plano B, teve ali um grande aprendizado. Desde o choque cultural, o abismo social, sistema de educação, saúde, tecnologia, durante os 6 meses que viveu em Moçambique. “O jovem é sem limitas, eu não sabia qual seria meu salário, onde ia morar, nada disso, mesmo assim me joguei”, contou.

Ainda recém-formada, prestou mais de 30 trainees e passou por dificuldades devido ao modelo de recrutamento baseado em raciocínio lógico. “Sigo protestando até o fim da vida sobre provas de raciocínio lógico em processos seletivos de trainee”, enfatizou.

Encontrou em um processo online a oportunidade de se candidatar a uma vaga de inside sales, na Microsoft, onde trilhou um caminho para especialista, técnico, abrindo portas também para fazer um MBA em gestão de TI pela FIAP. “Nessa época eu tinha aula 3 dias da semana o dia inteiro, além do trabalho. Foi um ano que eu me dediquei a aprender técnicas e valeu muito a pena”, disse ela.

Durante sua carreira descobriu que sua maior paixão é criar conexões entre as pessoas, fazendo um grande networking para que mais pessoas como ela possam ter oportunidades.

Mas, até descobrir isso passou por muitas dificuldades e confessa que o maior erro em sua carreira foi se apegar a cargos, e não ao aprendizado. “Me apaixonei por um cargo. Queria ser executiva antes dos 25 anos. Deu tudo errado. Aprendi que o foco precisa estar na jornada”, lembrou.

Aos 31 anos, seu maior objetivo é ser uma executiva que influencia o mercado. “Eu nunca sonhei em trabalhar em qualquer big tech. O que me atraiu foram as propostas de negócio”, confessou.

Dentro do universo de clientes, sempre teve que lidar com a questão de ser uma mulher jovem, negra, que não veio dos grandes centros, e não tem uma carreira de tecnologia. Com seus mentores, aprendeu que é importante estar sempre atenta e vigilante, e entender que as vezes é preciso ceder. Defende que o pipeline de mentores seja misto e não majoritariamente branco ou preto.

A participação no conselho 101, programa de incentivo à presença de mulheres negras em conselhos de administração, veio de uma inspiração do conselheiro e principal executivo da Microsoft, John W. Thompson. Um homem negro, entre os principais conselheiros da Big Tech.  “No Conselheira 101 não somos workshop, certificadores ou algo do tipo. Somos promotores de conversas. Incentivando para que Mulheres pretas sejam levadas a conselhos”, contou.

Hoje, seu maior foco é alavancar e construir novas conexões, com troca de aprendizados. “Tenho um bolsão único de energia. É a mesma energia que usamos para nos degastar com o que não gostamos, e cuidar de pessoas que gostamos. Eu escolhi cuidar das pessoas que gosto, e esse nível de autoconhecimento é muito importante”, disse ela.

Para o futuro, pensa em seguir influenciando o seu povo, de dentro, conversando e abrindo espaços para que mais pessoas tenham oportunidades profissionais.

A paixão em fazer a diferença vem de dentro de casa, tendo sua mãe e sua pai como maior referência. “Dona Rosemar é arquiteta, especialista em química, doutora em engenharia e pós-graduada em patrimônio material”, contou.

Lisiane Lemos, é executiva no Google, faz parte do conselho consultivo do Fundo de Populações da ONU, foi eleita uma das brasileiras mais influentes pela lista Forbes Under 30, acumula 2 palestras TEDx, além de ser cofundadora do Conselheira 101. “Descobri que tecnologia é o meu lugar e vou continuar agindo estrategicamente e indo para lugares que me permitem aprender mais, para aí sim dividir meus aprendizados dividir com o máximo de pessoas, completou.

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