Quem já teve a sorte de tomar um “Café com Dona Jacira” e ouvir suas histórias estórias (como ela mesma reforçou que gosta que seja escrita essa palavra), sabe que a partir daí a vida ganhará um novo sabor, não porque o café dela tem algum ingrediente desconhecido, mas porque suas palavras trazem a realidade da vida e de tempos que se conectam porque mantêm as mesmas lutas: pela arte, pelo respeito as religiões de matriz africana, pela liberdade feminina, pelo território. Questões que trazem ora o doce, ora o amargo que é viver sendo negra, mulher e periférica no Brasil.
Durante entrevista coletiva realizada na manhã desta quarta-feira, 18, em sua casa, com a presença de jornalistas negros, Dona Jacira preparou um café da manhã especial para contar que deve lançar no dia 25 de outubro a segunda temporada do seu podcast, chamado “Café com Dona Jacira”. Ao anunciar a novidade, ela destacou o que já tínhamos certeza, ao dizer: “Eu sou contadora de estórias”.
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Do Jardim das Pedras, no extremo da zona norte de São Paulo, é de onde sairão os novos episódios do podcast, que traz uma temporada repleta de estórias sobre a vida de Dona Jacira, que além de escritora, poeta, ativista, cantora, artista plástica e bordadeira, também é mãe do rapper Emicida e de Evandro Fióti.
A nova temporada apresenta seis episódios e tem como palavra-chave a expressão africana, Bantu, “ndotolo”, que significa comunicação sensorial. Nela, Dona Jacira vai falar sobre costumes ancestrais que marcaram sua infância, além de abordar temas delicados que eram vivenciados pelas meninas, como o casamento infantil. A influência das religiões na comunidade do Jardim Ataliba Leonel, onde cresceu, também terá espaço nos novos episódios de “Café com Dona Jacira”.
“Como eu sou uma contadora de estórias, eu estou sempre tendo que voltar lá atrás para entender como eu nasci, o que foi que fizeram comigo, porque eu sou a única testemunha que a cada vez que alguém me dizia ‘você não vai escrever’, ‘você nasceu para ser isso’, isso e isso’, essa voz me dizia ‘não é isso’. E foi preciso que eu crescesse e que depois que eu tivesse os filhos, e que eu passasse por uma série de coisas e os meus filhos começam cada um deslanchando para suas vidas e eu já havia jogado a toalha. Então eu disse, ‘bom, eu preciso ser aquilo que as pessoas querem que eu seja’. Então eu fui estudar, fui fazer enfermagem. Mas tem uma outra questão, toda vez que eu tomo um caminho que não é meu, Exu me diz assim ‘não é por aí’. Então eu fiquei 3 anos na enfermagem, dois anos ali, três anos ali. E toda hora essa voz dizendo ‘você vai melhorar’. E eu queria estudar. Eu não tinha livros. Os livros na minha casa, eles começam a chegar na minha casa desde então”, contou ela ao explicar como ao longo da vida, assumiu o controle de sua trajetória para começar a olhar a própria história e perceber que podia contá-la para mais pessoas.
Ao ser questionada sobre em qual público gostaria que seu podcast chegasse, ela responde bem humorada: “Nas cozinhas, sabe? Igual eu faço. Eu pego o meu podcast, ajeito na janelinha da cozinha, e ali eu lavo a minha louça”.
Uma ilha dentro da comunidade
Uma ativista da cultura, Dona Jacira abre sua casa, em momentos pontuais, para realizar eventos culturais que discutem sociedade, alimentação, e que tem como objetivo unir a comunidade ao redor , mas para ela, o espaço ainda é uma ‘ilha’: “É uma ilha dentro da comunidade e foi muito duro porque há muitos anos quando eu comecei, eu convidava primeiro as minhas vizinhas, eu achava que isso tinha que ser para isso, porque isso é um sonho meu”, que a gente precisa ter essa faixa de ferramenta e falar sobre isso”, explicou.
“Eu descobri, com esses encontros em casa, que eu consegui trazer pessoas de África aqui. Nunca consegui trazer nenhum vizinho meu. Com a ascensão do meu filho, eu pensei, agora eles virão. Eu não consegui. E eu não consigo entender qual é essa virada que a periferia tem com a periferia quando uma pessoa ascende socialmente. Então, as pessoas vinham aqui me perguntar se a gente ia deixar fazer o Rodoanel, sabe? Porque, infelizmente, o território e o corpo, as pessoas delegam e entregam tudo na mão do Estado. E isso são as coisas mais importantes que a gente tem. Veja, que nós temos aqui um Rodoanel que até hoje a gente dá uso. Faz uso dele, mas tirou a moradia de muita gente e até hoje não sabe para que que serve. A gente não tem mais dimensão de sequer para quem deve ser cobrado. É a mesma coisa no nosso corpo”, reforçou. “Isso era o que eu gostaria de discutir com as pessoas da minha região, porque nos anos 80 alguém fez isso aqui e a gente não tinha ideia que dependia de nós”, disse.
“Eu não consegui acender a minha comunidade. E até parei porque eu fiquei envergonhada uma época, falei ‘meu deus, aqui parece uma casa de show’. Outras pessoas vem de outros lugares, mas as pessoas daqui só vem se eles veem o meu filho encontrar aqui para pedir autografo e aí eu disse ‘assim eu não quero'”, lembrou a escritora.
Planos futuros
Dona Jacira já tem planos para um futuro próximo. Ela reformou a casa onde mora na zona norte e preparou uma cozinha que deve se tornar um cenário para vídeos. Além disso, a matriarca também revelou que pretende transformar o podcast com suas histórias em um livro. Ela é autora de “Café”, uma biografia que conta suas memórias.