É importante analisar criticamente as teorias negras que chegam ao Brasil, especialmente as provenientes dos Estados Unidos. Algumas delas podem não se alinhar com a nossa própria realidade intelectual e social. Uma dessas teorias é o afropessimismo, elaborada no livro homônimo de Frank B. Wilderson III. O afropessimismo é uma teoria crítica que analisa os efeitos contínuos do racismo, colonialismo e escravidão na vida dos negros, vendo a negritude como uma condição de “morte ontológica” e posicionando os negros como inimigos internos da sociedade civil.
Embora essa ideia pareça se alinhar com a intelectualidade brasileira, como os escritos de Abdias Nascimento sobre a opressão sistêmica do racismo, uma análise mais aprofundada revela que o afropessimismo nega os avanços e conquistas dos povos negros brasileiros e latino-americanos, desconsiderando a realidade social desses indivíduos. Portanto, é necessário ter cautela ao importar teorias negras de outros contextos, pois elas podem não refletir adequadamente a experiência dos negros no Brasil.
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Em uma das respostas de sua entrevista para a Folha de São Paulo em 2021, Whindersson III acabou evidenciando como o Afropessimismo é totalmente desconectado da realidade Brasileira. Eu quero destacar aqui uma parte importante dessa entrevista.
FOLHA: No início do mês, uma mulher negra que estava grávida morreu baleada durante uma ação policial em uma favela no Rio de Janeiro. Essa morte ilustra a sua afirmação de que pessoas negras não são vistas como pais, mães, filhos de alguém?
WILDERSON III: Sim. Até 1865, a negritude era escravizada nos Estados Unidos. Aí houve uma guerra civil, emancipação, e as pessoas passaram a andar “livres”. Como a interpretação psíquica a respeito das pessoas negras poderia ter mudado da noite para o dia? Que evidências existem para sugerir isso? As pessoas me dizem: “prove”. Eu digo: “Não, você prove o oposto”. Você me prove que uma guerra aconteceu, correntes foram retiradas e, do nada, negros passaram a ser vistos como cidadãos e não como recursos. [https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/06/negros-nao-sao-vistos-como-humanos-mas-objetos-diz-autor-de-afropessimismo.shtml]
Essa é uma resposta escandalosa para um autor, pois trouxe uma perspectiva desleixada sobre a história, sugerindo que a psique negra não foi modificada nem pela própria ação histórica. Além disso, sabemos que o Brasil não vivenciou uma guerra civil com emancipação como foi a Estadunidense, mas sim diversas revoltas regionais e uma abolição gradual, que durou quase um século.
Nesse processo, houve intensa participação negra, com a formação de quilombos e movimentos como os Malês, Palmares e do Dragão do Mar. Sem contar como as matrizes africanas resistiram e mantiveram suas conexões ancestrais, deixando marcas profundas na identidade nacional brasileira. Dessa forma, o afropessimismo desconsiderado essa realidade mais ampla e diversa, caindo em uma abordagem simplista e centrada apenas no contexto norte americano.
Vários críticos internacionais apontam esse achatamento da história negra promovido pela visão do afropessimismo, que o Whindersson condensou na frase “Nós sugerimos que a escravidão é uma dinâmica racial que não terminou“. Destaco o Prof. Michael C. Dawsonde de Ciência Política na Universidade de Chicago e diretor fundador do seu Centro de Estudos de Raça, Política e Cultura:
“Eles subestimam as conquistas das lutas pela liberdade negra. Até a própria biografia de Wilderson é um testemunho de mudanças críticas na experiência negra nos EUA. As mudanças positivas que são omitidas no trabalho de muitos afropessimistas — como a formação da moderna sociedade civil negra e uma grande expansão de uma política negra robusta e frequentemente revolucionária — servem para apagar as lutas frequentemente heróicas dos ativistas negros; lutas que muitas vezes falharam tragicamente em trazer progresso substancial, mas que também às vezes alcançaram vitórias na luta pela libertação negra.” [https://www.ideology-theory-practice.org/blog/against-afropessimism]
Afropessimismo ou Lélia Gonzalez
Angela Davis já alertou para a necessidade de olhar para a intelectualidade Negra Brasileira, principalmente de mulheres como Lélia Gonzalez. O afropessimismo contrasta com a visão de Lélia sobre a identidade negra, Lélia era bastante consciente de como alguns autores estadunidenses mantinham essa abordagem centrada em si mesmos, segundo que Lélia trouxe pro centro da discussão o impacto cultural que as mulheres pretas e indígenas tiveram na construção das nossas identidades, da própria língua, inclusive, sem cair no pessimismo nilista que tira a existência negra da própria história humana.
A construção da identidade proposta por Lélia, chamada de Amefricanidade, nasce de uma proximidade direta com os povos nativos da floresta, os ameríndios. Considerando também o peso da opressão sobre sua existência. Enquanto o afropessimismo encara os povos indígenas como uma parte do sistema anti-negro e parceiro da opressão supremacista contra descendentes de africanos.
Na mesma entrevista o Whindersson afirmou “A coalizão multirracial impõe uma certa limitação acerca do que é permitido falar” e em sua obra ele encara que a luta central do mundo é dos brancos e seus “parceiros juniores” não brancos contra todos os negros, não importa sua posição.
O que ele chama de “parceiros juniores” é praticamente todas as comunidades não brancas do mundo, da asiática, a palestina, indiana, latina e etc. Porque basicamente sua leitura de mundo é formada apenas pelos negros e o sistema anti-negro. Não é incomum você encontrar afropessimistas atacando outras minorias nas redes sociais, principalmente a comunidade LGBTQIA+, que pra afropessimistas são um dos maiores aliados do sistema anti-negro global.
Quem critica esse ponto de maneira punjante é a Gloria Daisy Wekke, afro-surinamesa, professora e escritora que se concentrou em estudos de gênero e sexualidade na região e diáspora afro-caribenha. Ela foi a vencedora do Prêmio Ruth Benedict da American Anthropological Association em 2007
A facilidade com que Wilderson agrupa todos os outros que não são negros, sem aplicar nenhuma diferenciação, é surpreendente. Os brancos e seus parceiros juniores, que são subordinados e desfavorecidos, mas pertencem à humanidade, fizeram causa comum entre si em sua negrofobogênese, ou negrofobia. Com essa declaração, fica claro mais uma vez que Wilderson não pensa interseccionalmente, mas em termos singulares. Como é possível pensar sobre todas essas categorias de pessoas sem considerar as sobreposições entre elas? (-[https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7982355/mod_resource/content/0/wekker-2020-afropessimism_review.pdf]
Enquanto Wilderson e outros afropessimistas trabalham com a demonização da interseccionalidade, Lélia foi reconhecida como uma das primeiras intelectuais a trabalhar de maneira sistemática com o feminismo interseccional no Brasil. Ela analisou os fenômenos sociopolíticos que afetam a comunidade negra, destacando como as opressões de gênero e raça se entrelaçam e impactam a vida das mulheres negras da América-Latina, configurando a identidade que chamou de amefricanidade:
Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias – a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. (GONZALEZ, 1988)
Em vários textos da autora você consegue perceber as conexões entre povos ameríndios e amerficanos, como povos oprimidos pela colonização européia e a visão de que os ameríndios, principalmente as mulheres ameríndias, seriam parceiras da opressão anti-negro, como proposto pelo afropessimismo do Wilderson não encontra fundamentos aqui. No ensaio “Por um feminismo afro-latino-americano”, Lélia escreveu: “tentarei mostrar que, dentro do movimento de mulheres, as negras e indígenas são o testemunho vivo dessa exclusão. “
Um movimento despolitizante
Após considerar qualquer movimento histórico negro, inerente a agenda anti-negra e sem qualquer influência e resultado na condição do negro em ser um eterno escravizado, cercado de inimigos e grupos que reforçam a agenda anti-negra, o que resta ao pensamento negro mundial?
Como apontam alguns críticos essa análise extremamente simplificada do mundo deixa bastante turva a observação dos fatos, mantendo um relato falho da relação entre a opressão negra, a supremacia branca e o capitalismo. Sem enxergar esses aspectos como eles são no mundo, o afropessimismo, assumido como pensamento de mobilização, se torna uma ideologia despolitizante.
Na prática, como citei acima, é muito possível ver que a energia de afropessimistas estão mais concentrados em combater os grupos minoritários considerados antinegros, do que na própria supremacia branca, afinal, para eles a posição histórica definida pela supremacia é insuperável e sempre será.
Escute a conversa sobre isso no episódio do Infiltrados No Cast para saber mais sobre relatos e comentários de afropessimistas.