Por Rodrigo França
Carolina Rocha, uma das maiores intelectuais da contemporaneidade, entrega em A Culpa é do Diabo: o que li, vivi e senti nas encruzilhadas do racismo religioso um trabalho brilhante, que atravessa as fronteiras entre a pesquisa acadêmica, a vivência etnográfica e a potência da literatura de terreiro. Doutora em sociologia e pós-doutoranda em educação, Rocha – ou Dandara Suburbana, como também é conhecida – não apenas investiga, mas vivencia e sente as encruzilhadas que compõem a tessitura de sua obra. A partir de um olhar aguçado e comprometido com a descolonização do pensamento, ela ilumina as complexas relações entre religião, política e poder nas periferias brasileiras, desmascarando as engrenagens do racismo religioso.
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Desde o título, A Culpa é do Diabo já provoca. A expressão ecoa uma ironia afiada diante das acusações históricas que demonizam as religiões de matriz africana. O que a autora nos mostra, contudo, é que o verdadeiro “diabo” não está nos terreiros, mas no projeto colonial que segue operando na criminalização dessas tradições e na tentativa sistemática de apagamento das memórias e espiritualidades negras. Com uma escrita precisa e visceral, Rocha escancara como o racismo religioso se manifesta de forma brutal nas favelas do Rio de Janeiro, onde igrejas evangélicas, varejo de drogas e comunidades de axé se cruzam em um campo de disputa por espaço, poder e narrativa.
Ao contrário das leituras simplistas que reduzem os conflitos nas periferias à presença dos chamados “traficantes evangélicos”, a autora aprofunda a análise e revela a complexidade das interações entre religião e política. O que se vê na mídia é apenas a “ponta do iceberg”, alerta Rocha, enquanto forças econômicas e interesses estatais moldam um cenário onde a violência contra os povos de terreiro não é um efeito colateral, mas parte estruturante de um projeto de controle social. Com extrema habilidade, a autora desmonta os discursos que colocam evangélicos e praticantes das religiões afro-brasileiras como inimigos naturais, demonstrando que essa cisão beneficia justamente aqueles que lucram com a fragmentação da luta negra.
O grande mérito de A Culpa é do Diabo está na sua capacidade de articular denúncia e celebração. Se por um lado a obra expõe as perseguições e as violências enfrentadas pelas comunidades de axé, por outro, nos oferece um testemunho poderoso sobre sua resistência, sua beleza e sua capacidade de reinvenção. Os terreiros, apresentados como territórios políticos, emergem como espaços de acolhimento, cura e articulação comunitária. Mais do que nunca, Rocha reafirma o papel das mulheres negras, especialmente das ialorixás, como guardiãs de saberes ancestrais e estrategistas incansáveis na defesa de seus territórios espirituais e sociais.
A escrita de Carolina Rocha não se limita ao rigor acadêmico – embora ele esteja presente de forma indiscutível. O que diferencia sua abordagem é a força narrativa que confere ao texto um caráter vivo e pulsante. A autora escreve com o corpo, com a memória e com o axé de quem conhece as dores e as alegrias de pertencer a um povo cuja fé sempre foi uma ferramenta de luta e existência. A encruzilhada, metáfora central da obra, não é apenas o lugar de disputas, mas também de encontros, reinvenções e possibilidades.
Mais do que um livro necessário, A Culpa é do Diabo é uma oferenda. Uma oferenda para aqueles que lutam contra o racismo religioso, para os que resistem nos terreiros, para os que se recusam a aceitar as narrativas hegemônicas sobre suas próprias existências. Carolina Rocha reafirma sua posição como uma das mais importantes pensadoras de nosso tempo, trazendo uma contribuição incontornável para os debates sobre fé, política e identidade no Brasil. Sua obra nos convoca a olhar para as encruzilhadas não como locais de perdição, mas como territórios de potência, onde o passado e o futuro se encontram para transformar o presente.