A história quer incutir no imaginário coletivo brasileiro que a Independência do Brasil foi conquistada após um ato heroico de um homem branco que às margens do Rio Ipiranga em 7 de setembro de 1822 gritou “Independência ou Morte” e, em um passe de mágica, as tropas portuguesas sumiram, tornamo-nos independentes e fomos felizes para sempre. Esse conto de fadas repete-se em 13 de maio de 1888 quando a Princesa Isabel fica conhecida como a salvadora da pátria que libertou os escravos por ser uma mulher muito gentil, benevolente, empática e solidária. Essa é a versão que querem nos fazer acreditar, por isso é importante aguçar o senso crítico para perceber que a história é contada pela ótica dos opressores e como o racismo opera em todas as estruturas sociais, os formadores de opinião — que atuam na manutenção desse sistema racista — difundem através de livros, da mídia e de outros meios de disseminação de ideias, o heroísmo dos brancos e o apagamento da luta e da cultura negra.
Em verdade, a conquista da independência do Brasil foi consequência de uma luta árdua e a participação da Bahia nesse triunfo foi muito significativa. O estado foi palco de duas grandes revoltas: primeiro, a conjuração baiana, um movimento separatista que ocorreu em 1798 com forte apoio popular e que, inspirado pelo Iluminismo, lutava pela proclamação da República e pelo fim da escravidão; segundo, a Revolução Liberal de 1821 que exigia, sobretudo, uma constituição para o Brasil. Foi em 2 de julho de 1823 na Independência da Bahia, portanto, que, devido a essa forte pressão das revoltas antecessoras, as tropas portuguesas foram expulsas do nosso território. Pode-se dizer, assim, que a independência do Brasil consolidou-se com a independência da Bahia.
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Se a Bahia carrega uma história de luta e resistência, por que existe, então, o mito do baiano preguiçoso, como se não fôssemos trabalhadores? Como se só pensássemos em festas e carnaval? Como se nós nunca tivéssemos protagonizado, durante a história, revoltas que permitiram as conquistas da Independência do Brasil, abolição da escravatura e proclamação da República?
A antropóloga Elisete Zanlorenzi defendeu sua tese “o mito da preguiça baiana” na Universidade de São Paulo (USP), alegando que esse estereótipo nada tem de benigno e foi construído estrategicamente pela elite baiana (branca) para depreciar os negros. Um exemplo disso é um local no centro de Salvador conhecido como “Ladeira da Preguiça” que simboliza esse preconceito. Na sociedade escravocrata, os negros que reclamavam da ladeira com o peso das mercadorias nas costas eram chamados de preguiçosos pelos brancos que, das janelas de seus sobrados, gritavam: “Sobe, preguiça”. Assim, essa visão preconceituosa foi sendo difundida para todo o Brasil. Em alguns dicionários, o termo baiano aparece com o significado de “tolo, negro, mulato, ignorante e fanfarrão” e se refere a trabalhadores desqualificados de todos os estados do Nordeste. Além disso, existe um outro problema que reforça o mito da preguiça baiana: a falsa democracia racial. Devido Salvador ser a cidade mais negra fora da África, existe uma crença fajuta de que na nossa cidade todos são iguais.
Na visão dessas pessoas, se todo mundo aqui é igual, aqueles que não trabalham são preguiçosos. Um pensamento completamente equivocado, pois apesar de pretos serem a maioria esmagadora, não existe um compromisso com uma política antirracista e inclusiva que oportunize negros a conquistarem espaços de poder. Isso fica evidente quando percebemos que não houve sequer um prefeito ou prefeita negra eleita pelo povo; quando vemos que a maioria dos artistas soteropolitanos que se destacam no cenário musical são brancos; quando pretos estão nas periferias de Salvador e brancos residem nos bairros nobres. É uma assimetria absurda e quem não se mobiliza demonstrando repúdio a essas desigualdades é tão perverso e desumano quanto esse sistema que é conivente com o genocídio do povo preto, com sua exclusão e com a deslegitimação de toda a sua importância para o país. A classe dominante nunca demonstrou interesse em desconstruir esse estereótipo, pelo contrário, a indústria do turismo apropriou-se disso para atrair pessoas de outras regiões do país e obter lucro. “Quer descansar, vá para Salvador” , “Moro na cidade onde vocês passam férias” — essas e outras frases reafirmam a crença popular de que a Bahia resume-se à carnaval, praias e preguiça. Movimentos organizados do Sul e Sudeste já defenderam a sua separação do Brasil, em repúdio ao Nordeste.
Esses preconceitos demonstram que essas pessoas fazem descaso com as funções econômica, social, histórica, política e cultural que cidades nordestinas desempenham e contribuem para todo o Brasil. Salvador, por exemplo, foi a primeira capital do país não só por ser um ponto geográfico estratégico, mas também por ser um local próprio para o desenvolvimento da economia açucareira, uma vez que o Nordeste do país era o maior centro produtor de açúcar. A Bahia sempre esteve contribuindo para o Produto Interno Bruto (PIB) Brasileiro. A economia do estado é diversificada e atua nas atividades da agropecuária, indústria, mineração, turismo, produção de serviços etc… Na agropecuária o estado destaca-se como produtor de mamona, coco, feijão, mandioca. Nas proximidades de Ilhéus encontram-se, também, condições favoráveis para a produção de cacau, além de milho e cana-de-açúcar. O estado tem potencial nas áreas química, petroquímica, agroindústria, automobilística, comunicações, bebidas, produtos alimentares, etc… Artistas baianos como Gilberto Gil e Caetano foram grandes referências na luta contra a Ditadura Militar. Acabar com o mito do baiano preguiçoso é, portanto, estar comprometido com uma política antirracista para que nordestinos não sejam oprimidos em outras regiões do país e reconhecer que a Bahia sempre foi sinônimo de luta e resistência, sendo uma forte potência na construção da identidade brasileira.
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Referências:
• Indicadores Socioeconômicos da Bahia – Portal do Mec
• O mito da preguiça baiana, trabalho e racismo – Portal Geledés