por Rodrigo França
Naquela madrugada, as correntes já não tilintavam nas pernas dos corpos pretos — mas continuavam apertadas em torno de seus destinos. Não houve festa. Não houve promessa de futuro. Só o silêncio cruel de quem, ao supostamente conceder a liberdade, mesmo antes retirando o chão, a casa, o sustento, o nome e demonizando a fé. O 13 de maio chegou com uma assinatura e partiu como um abandono. No dia seguinte, era a fome quem aguardava nas esquinas. Era o esquecimento que tomava conta das igrejas, dos jornais, das praças e das escolas. A liberdade, para o povo negro, veio sem terra, sem teto, sem emprego, sem educação, sem indenização, sem cidadania. Porque antes da travessia tudo isso existia, com excelência.
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O mito da abolição é um dos maiores engodos da narrativa nacional. Em vez de simbolizar um gesto de justiça, tornou-se marco da negligência: o Estado brasileiro rompeu formalmente com a escravidão, mas não com a lógica escravocrata. As pessoas antes mercadoria tornaram-se descartáveis. A liberdade virou sinônimo de marginalidade. Não foi à toa que os primeiros códigos penais do pós-abolição trataram de enquadrar a vadiagem como crime. Para o Estado, a presença negra livre nos centros urbanos passou a representar uma ameaça.
Em 1888, o Brasil era o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Milhares de pessoas ainda estavam legalmente escravizadas. Mas milhões de outras, nascidas livres e descendentes de africanos, já haviam sentido a brutalidade de um sistema que se sustentava na racialização do trabalho, no controle dos corpos e na negação de direitos. A Lei Áurea, com seus míseros dois artigos, não previa nenhuma política de inclusão. Nenhuma medida de reparação. Nenhuma menção à justiça.
Enquanto os senhores de escravizados receberam indenizações por suas “perdas”, os libertos foram lançados à própria sorte. Sem terras, foram impedidos de participar dos programas de colonização voltados à imigração europeia. Sem acesso à educação, viram-se confinados ao subemprego. Sem direitos civis plenos, tornaram-se alvo fácil das forças repressoras. O 13 de maio não selou a liberdade: instituiu a exclusão como política pública.
Há uma permanência desse projeto de exclusão. Basta observar os dados contemporâneos. Segundo o IBGE, as pessoas negras representam mais de 70% da população em situação de pobreza extrema no país. São 75% das vítimas de homicídio, segundo o Atlas da Violência. São minoria nas universidades, nos cargos de liderança, nos espaços de poder. A cada passo da história brasileira, é possível rastrear o eco do abandono do dia seguinte.
O racismo estrutural não nasceu do nada — ele é herdeiro direto da escravidão não reparada. A ausência de uma reforma agrária, a negação de políticas afirmativas por décadas, a criminalização das culturas negras, a marginalização dos territórios quilombolas, tudo isso se conecta a 14 de maio de 1888: o dia em que o Brasil acordou sem escravidão, mas continuou profundamente escravocrata.
E, ainda assim, resistimos. A cada terreiro que se reergue após ataques. A cada roda de samba que entoa a ancestralidade. A cada sala de aula que hoje tem um professor negro ou professora negra contando outra versão da história. A cada artista preto que performa, canta, dirige, lidera. Não por generosidade do Estado, mas apesar dele. Cada conquista é fruto de uma luta árdua, silenciosa ou estrondosa, mas incessante.
A abolição, para o povo negro, continua sendo um processo inacabado. Ela não será completa enquanto houver genocídio da juventude negra. Enquanto mães pretas continuarem enterrando seus filhos. Enquanto os becos forem mais vigiados que os gabinetes. Enquanto a pele determinar o futuro de uma criança. Enquanto a dívida histórica não for reconhecida, debatida e reparada — e não com esmolas ou homenagens pontuais, mas com políticas públicas consistentes, com orçamento, com responsabilidade, com mudança de estruturas.
O 13 de maio, portanto, deve ser lembrado — não como data de libertação, mas como marco do não-feito, do que foi negado. Como memória da traição. E como combustível para o que ainda precisa ser construído: um Brasil onde o povo negro não precise mais resistir para simplesmente existir.