Texto: Rodrigo França
O palco do Sesc Ipiranga, transformado em ringue e encruzilhada, nos lembra: ser negro e dissidente nunca foi só existir — é, sobretudo, enfrentar o mundo e, apesar do peso, permanecer inteiro.
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Emile Griffith foi esse corpo impossível de domar. Negro, caribenho, bissexual, campeão mundial em três categorias de peso — mas carregando nos ombros algo muito maior do que cinturões: o peso de quebrar as algemas invisíveis que o mundo impôs a corpos como o dele. O menino que saiu das ilhas do Caribe pra brilhar no ringue dos Estados Unidos não imaginava que sua maior luta não seria contra os adversários, mas contra o preconceito, a homofobia e o racismo que atravessam gerações.
Quando o chamaram de “bicha” em rede nacional — o insulto cuspido por Kid Paret ecoou como um soco forte no estômago. Griffith respondeu com os punhos, mas também com as contradições que acompanham nossos passos. Paret não sobreviveu, e Emile nunca mais pôde andar sem o fantasma desse golpe.
É desse lugar de dor, glória e silenciamento que nasce o espetáculo 12º Round: A História de Emile Griffith, um teatro que não se limita à cena, mas que pulsa como chamado ancestral. Bruno Lourenço, ator premiado e agora diretor desse rito cênico, costura a montagem com elegância e firmeza. Não é sobre vitrine de sofrimento. É sobre dar corpo, voz e dignidade a quem tentaram apagar da história. E, como bom griot moderno, Bruno também assina a trilha sonora, um passeio sofisticado entre a memória e o agora.
A dramaturgia de Sérgio Roveri tem fôlego de maratonista e precisão de poeta. São 12 rounds —cenas que avançam e recuam como as marés, como as memórias embaralhadas de quem carrega cicatrizes. A linearidade aqui não existe, porque também não existe linearidade na travessia preta, na vida dissidente, na luta de quem ousa sonhar fora da caixa.
E que lindo é ver Fernando Vitor dar vida — e que vida! — a Emile Griffith. Como se Griffith fosse entidade atravessando o tempo para cobrar o que lhe é devido. Cada gesto, cada silêncio, cada olhar dele carrega dignidade, dor, beleza, contradição e força. Ao lado dele, Letícia Calvosa que transita entre personagens com a sabedoria de quem sabe que a mãe, a amante, a amiga, a ancestral podem habitar o mesmo corpo. Letícia é firme, delicada, precisa. É ela quem, em muitos momentos, sussurra pra gente que, por trás da dor, existe também o cuidado, o afeto, a resistência que brota das mulheres negras.
Alexandre Ammano veste diferentes peles em cena — o adversário, o aliado, o reflexo — e em cada aparição reafirma: ser homem negro também é lidar com as fronteiras da força e da vulnerabilidade, com o jogo cruel que tenta nos colocar uns contra os outros. Alexandre carrega no olhar a firmeza dos que vieram antes e a inquietação dos que querem um outro amanhã.
A direção de movimento de Tainara Cerqueira transforma o palco em território sagrado, onde o corpo vira linguagem, onde o soco vira poesia, onde o deslocamento é denúncia. Tainara faz o corpo negro dançar e lutar ao mesmo tempo — como se estivesse numa roda de samba, numa gira, numa esquina de Salvador ou Harlem.
O 12º Round não é teatro para aplaudir e esquecer. É teatro que atravessa, que mexe, que dá soco e abraço ao mesmo tempo. É espetáculo que reafirma que, mesmo cansados, mesmo feridos, seguimos. E como Emile Griffith, seguimos dançando, lutando, dizendo ao mundo: aqui ninguém cai fácil.
E que o gongo toque. Porque nós estamos prontos para o próximo round.
Serviço
O espetáculo “12º Round: A História de Emile Griffith” estará em cartaz até o dia 13 de julho.
Horário: Sextas-feiras e sábados, às 20h | Domingos e feriados, às 18h
Sessões Extras: 9 de julho (qua), às 18h; 10 de julho (qui), às 20h
Ingressos: R$ 18 (Credencial Plena), R$ 30 (meia-entrada), R$ 60 (inteira)
Link da Atividade: https://www.sescsp.org.br/programacao/12o-round-a-historia-de-emile-griffith/
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